Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A cozinheira feliz, a grandeza da sinceridade
Therezinha meu amor. Estás sempre em meu coração. Desde o momento
em que a vi meu coração tornou-se cativo de seus encantos. Ao vê-la meiga e
bela senti minh’alma perturbada minha vida até então vazia e triste. Tornou-se
cheia de luz e esperança acesa em meu peito a chama do amor. O amor que
despertou em mim. Therezinha queridinha do coração é iluminado pela sua
pureza e encontra em meu coração a grandeza de minha sinceridade. Que
felicidade podemos encontrar um dia num coração que pulse junto ao nosso,
irmanados nas doçuras e agruras da vida um coração amigo que nos conforte
uma alma pura que nos adore e leve ao céu doce balada de amor a mulher
querida com que sonhamos. Eternamente seu apaixonado Edgard. Da
Therezinha querida peço-lhe.
Resposta. Estrada São Luiz, 30-C, Santa Cruz é o meu Endereço.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A criada
Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas
espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era
feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o
sinal da vida.
Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços
indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas,
carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga
presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa
e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos
eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão
independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos
olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.
Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena
fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no
seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. “Eu tive medo”,
dizia com naturalidade. “Me deu uma fome”, dizia, e era sempre incontestável o
que dizia, não se sabe por quê. “Ele me respeita muito”, dizia do noivo e,
apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava
num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. “Eu tenho
vergonha”, dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de
pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de
trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. “Deus me livre, não
é?”, dizia ausente.
Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e
sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam
vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado
sofria e nada podia fazer. Só esperar.
Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém
ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração
apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo
passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela
acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de
seu repouso na tristeza.
Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter
bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito
antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se
descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na
escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais,
encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado
talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a
floresta.
Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a
floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os
olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta
que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.
Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na
floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera,
com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de
ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava:
fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.
Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam
constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar
roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.
Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela
lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que
estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais
remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que
trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando
calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.
A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de
comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa
esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho
discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera
em suas florestas.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A hora da Estrela (excerto)
... já que sou, o jeito é ser.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a
escrever. (...) Pensar é um ato. Sentir é um fato.
Estou fruindo o que existe. Calada, aérea, no meu grande sonho. Como
nada entendo - então adiro à vacilante realidade móvel. O real eu atinjo através
do sonho.
Eu te invento, realidade. E te ouço como remotos sinos surdamente
submersos na água badalando trémulos. Estou no âmago da morte? E para
isso estou viva? O âmago sensível. E vibra-me esse it. Estou viva. Como uma
ferida, flor na carne, está em mim aberto o caminho do doloroso sangue. Com
o directo e por isso mesmo inocente erotismo dos índios da Lagoa Santa.
Eu, exposta às intempéries, eu inscrição aberta no dorso de uma pedra,
dentro dos largos espaços cronológicos legados pelo homem da pré-história.
Sopra o vento quente das grandes extensões milenares e cresta a minha
superfície
Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a
quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora
- também não faço a menor falta, e até o que eu escrevo um outro escreveria.
Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode
lacrimejar piegas.
Escrevo neste instante com prévio pudor por vos estar invadindo com tal
narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão
vivo de vida poderá quem sabe escorrer e coagular em cubos de geléia
trémula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que
cada um reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem
pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa
mais preciosa do que ouro - existe a quem falte o delicado essencial. (...)
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora seja
obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com
falso livre arbítrio - vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais
importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não
quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é
que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e
'gran finale' seguido de silêncio e chuva caindo.
Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de
ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais
dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um
desonesto. (...) Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que
sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a
mim.
... dormia de combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de
sangue pálido (...) Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido.
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de nãosei-
o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho
distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se
'panos', diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada
de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda
era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa,
de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisarlhe
que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo,
pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do
rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava.
Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.
Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada
que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo.
Sofro por ela.
Então - ali deitada - teve uma húmida felicidade suprema, pois ela
nascera para o abraço da morte. (...) E havia certa sensualidade no modo
como se encolhera. Ou é como a pré-morte se parece com a intensa ânsia
sensual? É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. (...)
Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte
pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer
um desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca
experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que
mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser
mulher. Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor.
Sim, doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a
outra coisa que vós chamais de alma. (...)
Nesta hora exacta, Macabéa sente um fundo enjoo de estômago e quase
vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de
mil pontas.
O que é que eu estou vendo agora é e que me assusta? Vejo que ela
vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no
âmago: vitória!
E então - então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a
águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato
estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.
(...) O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo
em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo.
Etc. , etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio
desafinada. Eu vos pergunto:
- Qual é o peso da luz?
E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu
Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?! Não
esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Enfim, descobrimos, agora, que tudo começa e acaba com um sim.
Também é preciso coragem para morrer, silêncio para ouvir o grito da vida.
In “A Hora da Estrela"
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A lucidez perigosa
Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa actual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A menor mulher do Mundo
Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Petre,
caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma
pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que
menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele
foi.
No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E
- como uma caixa dentro de um caixa - entre os menores pigmeus do mundo
estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à
necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.
Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do
verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de
quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. “Escura como um
macaco”, informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu
concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e
lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.
Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante,
no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à
conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não
desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e
dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir
classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a
seu respeito.
Sua raça de gente está aos poucos sendo exterminada. Poucos
exemplares humanos restam dessa espécie que, não fosse o sonso perigo da
África, seria povo alastrado. Fora doença, infectado hálito de águas, comida
deficiente e feras rondantes, o grande risco para os escassos Likoualas está
nos selvagens Bantos, ameaça que os rodeia em ar silencioso como em
madrugada de batalha. Os Bantos os caçam em redes, como fazem com os
macacos. E os comem. Assim: caçam-nos em redes e os comem. A racinha de
gente, sempre a recuar e a recuar, terminou aquarteirando-se no coração da
África, onde o explorador afortunado a descobriria. Por defesa estratégica,
moram nas árvores mais altas. De onde as mulheres descem para cozinhar
milho, moer mandioca e colher verduras; os homens, para caçar. Quando um
filho nasce, a liberdade lhe é dada quase que imediatamente. É verdade que
muitas vezes a criança não usufruirá por muito tempo dessa liberdade entre
feras. Mas é verdade que, pelo menos, não se lamentará que, para tão curta
vida, longo tenha sido o trabalho. Pois mesmo a linguagem que a criança
aprende é breve e simples, apenas essencial. Os Likoualas usam poucos
nomes, chamam as coisas por gestos e sons animais. Como avanço espiritual,
têm um tambor. Enquanto dançam ao som do tambor, um machado pequeno
fica de guarda contra os Bantos, que virão não se sabe de onde.
Foi, pois, assim que o explorador descobriu, toda em pé e a seus pés, a
coisa humana menor que existe. Seu coração bateu porque esmeralda
nenhuma é tão rara. Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros.
Nem o homem mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça. Ali
estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar.
Foi então que o explorador disse, timidamente e com uma delicadeza de
sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz:
- Você é Pequena Flor.
Nesse instante Pequena Flor coçou-se onde uma pessoa não se coça. O
explorador - como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade a
que um homem, sempre tão idealista, ousa aspirar - o explorador, tão vívido,
desviou os olhos.
A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos
jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com
a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os
pés espalmados. Parecia um cachorro.
Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto
o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez “porque me dá
aflição”.
Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela
pequenez da mulher africana que - sendo tão melhor prevenir que remediar -
jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora.
Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou
um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma
bondade perigosa estava no ar.
Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e
ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa
menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das
melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A
existência de Pequena Flor levou a menina a sentir - com uma vaguidão que só
anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em
pensamento - levou-a a sentir, numa primeira sabedoria, que “a desgraça não
tem limites”.
Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase
de piedade:
- Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!
- Mas - disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa - mas é tristeza de
bicho, não é tristeza humana.
- Oh! Mamãe - disse a moça desanimada.
Foi em outra casa que um menino esperto teve uma idéia esperta:
- Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de
Paulinho enquanto ele está dormindo? quando ele acordasse, que susto, hein!
que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela!
a gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!
A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao
espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do
tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já
pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido
da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a
freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas,
puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a.
Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de
grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a
malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que
queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então
olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve
terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser
apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho
inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a
evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor
morde. “Vou comprar um terno novo para ele”, resolveu olhando-o absorta.
Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas,
obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma
superficialidade tranqüilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês
da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que
devia ser “escura como um macaco”. Então, olhando para o espelho do
banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele
seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância
insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um
domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e
milênios perdidos.
Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de
calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E
foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais
agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família
nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável,
aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A
alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou
possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria
cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:
- Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga - disse o pai
sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. - Nesta casa
tudo termina em briga.
- Você, José, sempre pessimista - disse a mãe.
- A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenezinho dela? -
disse ardente a filha mais velha de treze anos.
O pai mexeu-se atrás do jornal.
- Deve ser o bebê preto menor do mundo - respondeu a mãe, derretendose
de gosto. - Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha
grande!
- Chega de conversas! - disse o pai.
- Você há de convir - disse a mãe inesperadamente ofendida - que se
trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.
E a própria coisa rara?
Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração - quem
sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode
mais confiar - enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais
raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo.
Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser
humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde
que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou
espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.
É que a menor mulher do mundo estava rindo.
Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A
própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido
comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso
de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranqüilidade, entre as
espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso
numa ação - e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria
coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala,
ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela
continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada.
Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo
secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso
bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava
atrapalhado.
Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque,
dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.
É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de
Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que
o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela
acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava
muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena
Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador
- pode-se mesmo dizer seu “profundo amor”, porque, não tendo outros
recursos, ela estava reduzida à profundeza - pois nem de longe seu profundo
amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua
bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem
desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por
causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se
goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses
refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota,
amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a
um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena,
grávida, quente.
O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que
abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de
tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de
explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosaesverdeado,
como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.
Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se
chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e
recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras
articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.
Pequena Flor respondeu-lhe que “sim”. Que era muito bom ter uma árvore
para morar, sua, sua mesmo. Pois - e isso ela não disse, mas seus olhos se
tornaram tão escuros que o disseram - pois é bom possuir, é bom possuir, é
bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.
Marcel Petre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo
menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve
que se arranjar como pôde:
Pois olhe - declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão
- pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz..
in “Laços de família”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A Mensagem
A princípio, quando a moça disse que sentia angústia, o rapaz se
surpreendeu tanto que corou e mudou rapidamente de assunto para disfarçar o
aceleramento do coração.
Mas há muito tempo - desde que era jovem - ele passara afoitamente do
simplismo infantil de falar dos acontecimentos em termos de “coincidência”. Ou
melhor - evoluindo muito e não acreditando nunca mais - ele considerava a
expressão “coincidência” um novo truque de palavras e um renovado ludíbrio.
Assim, engolida emocionadamente a alegria involuntária que a
verdadeiramente espantosa coincidência dela também sentir angústia lhe
provocara - ele se viu falando com ela na sua própria angústia, e logo com uma
moça! ele que de coração de mulher só recebera o beijo de mãe.
Viu-se conversando com ela, escondendo com secura o maravilhamento
de enfim poder falar sobre coisas que realmente importavam; e logo com uma
moça! Conversavam também sobre livros, mal podiam esconder a urgência
que tinham de pôr em dia tudo em que nunca antes haviam falado. Mesmo
assim, jamais certas palavras eram pronunciadas entre ambos. Dessa vez não
porque a expressão fosse mais uma armadilha de que os outros dispõem para
enganar os moços. Mas por vergonha. Porque nem tudo ele teria coragem de
dizer, mesmo que ela, por sentir angústia, fosse pessoa de confiança. Nem em
missão ele falaria jamais, embora essa expressão tão perfeita, que ele por
assim dizer criara, lhe ardesse na boca, ansiosa por ser dita.
Naturalmente, o fato dela também sofrer simplificara o modo de se tratar
uma moça, conferindo-lhe um caráter masculino. Ele passou a tratá-la como
camarada.
Ela mesma também passou a ostentar com modéstia aureolada a própria
angústia, como um novo sexo. Híbridos - ainda sem terem escolhido um modo
pessoal de andar, e sem terem ainda uma caligrafia definitiva, cada dia a
copiarem os pontos de aula com letra diferente - híbridos eles se procuravam,
mal disfarçando a gravidade. Uma vez ou outra, ele ainda sentia aquela
incrédula aceitação da coincidência: ele, tão original, ter encontrado alguém
que falava a sua língua! Aos poucos compactuaram. Bastava ela dizer, como
numa senha, “passei ontem uma tarde ruim”, e ele sabia com austeridade que
ela sofria como ele sofria. Havia tristeza, orgulho e audácia entre ambos.
Até que também a palavra angústia foi secando, mostrando como a
linguagem falada mentia. (Eles queriam um dia escrever.) A palavra angústia
passou a tomar aquele tom que os outros usavam, e passou a ser um motivo
de leve hostilidade entre ambos. Quando ele sofria, achava uma gafe ela falar
em angústia. “Eu já superei esta palavra”, ele sempre superava tudo antes
dela, só depois é que a moça o alcançava.
E aos poucos ela se cansou de ser aos olhos dele a única mulher
angustiada. Apesar disso lhe conferir um caráter intelectual, ela também era
alerta a essa espécie de equívocos. Pois ambos queriam, acima de tudo, ser
autênticos. Ela, por exemplo, não queria erros nem mesmo a seu favor, queria
a verdade, por pior que fosse. Aliás, às vezes tanto melhor se fosse “por pior
que fosse”. Sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em ser
condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava de... de
ser uma pessoa. Ao mesmo tempo que isso a lisonjeava, ofendia um pouco:
era como se ele se surpreendesse de ela ser capaz, exatamente por não julgála
capaz. Embora, se ambos não tomassem cuidado, o fato dela ser mulher
poderia de súbito vir à tona. Eles tomavam cuidado.
Mas, naturalmente, havia a confusão, a falta de possibilidade de
explicação, e isso significava tempo que ia passando. Meses mesmo.
E apesar da hostilidade entre ambos se tornar gradativamente mais
intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se impedir
de se procurar. E isso porque - se na boca dos outros chamá-los de “jovens”
lhes era uma injúria - entre ambos “ser jovem” era o mútuo segredo, e a
mesma desgraça irremediável. Eles não podiam deixar de se procurar porque,
embora hostis - com o repúdio que seres de sexo diferente têm quando não se
desejam -, embora hostis, eles acreditavam na sinceridade que cada um tinha,
versus a grande mentira alheia. O coração ofendido de ambos não perdoava a
mentira alheia. Eles eram sinceros. E, por não serem mesquinhos, passavam
por cima do fato de terem muita facilidade para mentir - como se o que
realmente importasse fosse apenas a sinceridade da imaginação. Assim continuaram
a se procurar, vagamente orgulhosos de serem diferentes dos outros,
tão diferentes a ponto de nem se amarem. Aqueles outros que nada faziam
senão viver. Vagamente conscientes de que havia algo de falso em suas
relações. Como se fossem homossexuais de sexo oposto, e impossibilitados de
unir, em uma só, a desgraça de cada um. Eles apenas concordavam no único
ponto que os unia: o erro que havia no mundo e a tácita certeza de que se eles
não o salvassem seriam traidores. Quanto a amor, eles não se amavam, era
claro. Ela até já lhe falara de uma paixão que tivera recentemente por um
professor. Ele chegara a lhe dizer - já que ela era como um homem para ele -,
chegara mesmo a lhe dizer, com uma frieza que inesperadamente se quebrara
em horrível bater de coração, que um rapaz é obrigado a resolver “certos
problemas”, se quiser ter a cabeça livre para pensar. Ele tinha dezesseis anos,
e ela, dezessete. Que ele, com severidade, resolvia de vez em quando certos
problemas, nem seu pai sabia.
O fato é que, tendo uma vez se encontrado na parte secreta deles
mesmos, resultara na tentação e na esperança de um dia chegar ao máximo.
Que máximo?
Que é, afinal, que eles queriam? Eles não sabiam, e usavam-se como
quem se agarra em rochas menores até poder sozinho galgar a maior, a difícil
e a impossível; usavam-se para se exercitarem na iniciação; usavam-se
impacientes, ensaiando um com o outro o modo de bater asas para que enfim -
cada um sozinho e liberto pudesse dar o grande vôo solitário que também
significaria o adeus um do outro. Era isso? Eles se precisavam
temporariamente, irritados pelo outro ser desastrado, um culpando o outro de
não ter experiência. Falhavam em cada encontro, como se numa cama se
desiludissem. O que é, afinal, que queriam? Queriam aprender. Aprender o
quê? eram uns desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes
sem ter vergonha, porque sabiam que havia os que passam fome; eles comiam
com fome e vergonha. Infelizes? Como? se na verdade tocavam, sem nenhum
motivo, num tal ponto extremo de felicidade como se o mundo fosse sacudido e
dessa árvore imensa caíssem mil frutos. Infelizes? se eram corpos com sangue
como uma flor ao sol. Como? se estavam para sempre sobre as próprias
pernas fracas, conturbados, livres, milagrosamente de pé, as pernas dela
depiladas, as dele indecisas mas a terminarem em sapatos número 44. Como
poderiam jamais ser infelizes seres assim?
Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes,
forçando, uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se
repetira - e sem nem ao menos se amarem. O ideal os sufocava, o tempo
passava inútil, a urgência os chamava - eles não sabiam para o que
caminhavam, e o caminho os chamava. Um pedia muito do outro, mas é que
ambos tinham a mesma carência, e jamais procurariam um par mais velho que
lhes ensinasse, porque não eram doidos de se entregarem sem mais nem
menos ao mundo feito.
Um modo possível de ainda se salvarem seria o que eles nunca
chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa palavra
constrangedora? Seria encontrarem-se quando, por coincidência, caísse uma
chuva repentina sobre a cidade? Ou talvez, enquanto tomavam um refresco,
olharem ao mesmo tempo a cara de uma mulher passando na rua? ou mesmo
encontrarem-se por coincidência na velha noite de lua e vento? Mas ambos
haviam nascido com a palavra poesia já publicada com o maior despudor nos
suplementos de domingo dos jornais. Poesia era a palavra dos mais velhos. E
a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos. Em quem o instinto
avisa: que um dia serão caçados. Eles já tinham sido por demais enganados
para poderem agora acreditar. E, para caçá-los, teria sido preciso uma enorme
cautela, muito faro e muita lábia, e um carinho ainda mais cauteloso - um
carinho que não os ofendesse - para, pegando-os desprevenidos, poder
capturá-los na rede. E, com mais cautela ainda para não despertá-los, levá-los
astuciosamente para o mundo dos viciados, para o mundo já criado; pois esse
era o papel dos adultos e dos espiões. De tão longamente ludibriados,
vaidosos da própria amargura, tinham repugnância por palavras, sobretudo
quando uma palavra - como poesia - era tão esperta que quase exprimia, e aí
então é que mostrava mesmo como exprimia pouco. Ambos tinham, na
verdade, repugnância pela maioria das palavras, o que estava longe de facilitar-
lhes uma comunicação, já que eles ainda não haviam inventado palavras
melhores: eles se desentendiam constantemente, obstinados rivais. Poesia?
Oh, como eles a detestavam. Como se fosse sexo. Eles também achavam que
os outros queriam caçá-los não para o sexo, mas para a normalidade. Eles
eram medrosos, científicos, exaustos de experiência. Na palavra experiência,
sim, eles falavam sem pudor e sem explicá-la: a expressão ia mesmo variando
sempre de significado. Experiência às vezes também se confundia com
mensagem. Eles usavam ambas as palavras sem aprofundar-lhes muito o
sentido.
Aliás, não aprofundavam nada, como se não houvesse tempo, como se
existissem coisas demais sobre as quais trocar idéias. Não percebendo que
não trocavam nenhuma idéia.
Bem, mas não era apenas isso, e nem com essa simplicidade. Não era
apenas isso: nesse ínterim o tempo ia passando, confuso, vasto, entrecortado,
e o coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio contra o mundo
que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era piedade, e havia neles
a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que de repente podia se
quebrar denunciando duas caras que se consternavam porque eles não sabiam
como se sentar com naturalidade numa sorveteria: tudo então se quebrava,
denunciando de repente dois impostores. O tempo ia passando, nenhuma idéia
se trocava, e nunca, nunca eles se compreendiam com perfeição como na
primeira vez em que ela dissera que sentia angústia e, por milagre, também ele
dissera que sentia, e formara-se o pacto horrível. E nunca, nunca acontecia
alguma coisa que enfim arrematasse a cegueira com que estendiam as mãos e
que os tornasse prontos para o destino que impaciente os esperava, e os
fizesse enfim dizer para sempre adeus.
Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como uma
gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse a
plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como uma
gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei.
O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles
estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de uma casa velha e vazia. Mas
eles tinham uma vida pobre e ansiosa como se nunca fossem envelhecer,
como se nada jamais lhes fosse suceder - e então a casa tornou-se um
acontecimento. Haviam voltado da última aula do período escolar. Tinham
tomado o ônibus, saltado, e iam andando. Como sempre, andavam entre
depressa e soltos, e de repente devagar, sem jamais acertar o passo, inquietos
quanto à presença do outro. Era um dia ruim para ambos, véspera de férias. A
última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada um desprezando o que
na casa mútua de ambos as famílias lhes asseguravam como futuro e amor e
incompreensão. Sem um dia seguinte e sem amarras, eles estavam pior que
nunca, mudos, de olhos abertos.
Nessa tarde a moça estava de dentes cerrados, olhando tudo com rancor
ou ardor, como se procurasse no vento, na poeira e na própria extrema
pobreza de alma mais uma provocação para a cólera.
E o rapaz, naquela rua da qual eles nem sabiam o nome, o rapaz pouco
tinha do homem da Criação. O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda,
involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e
indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário
dela, que estava agressiva. Informes como eram, tudo lhes era possível,
inclusive às vezes permutavam as qualidades: ela se tornava como um
homem, e ele com uma doçura quase ignóbil de mulher. Várias vezes ele
quase se despedira, mas, vago e vazio como estava, não saberia o que fazer
quando voltasse para casa. como se o fim das aulas tivesse cortado o último
elo. Continuara, pois, mudo atrás dela, seguindo-a com a docilidade do
desamparo. Apenas um sétimo sentido de mínima escuta ao mundo o
mantinha, ligando-o em obscura promessa ao dia seguinte. Não, os dois não
eram propriamente neuróticos e - apesar do que eles pensavam um do outro
vingativamente nos momentos de mal contida hostilidade - parece que a
psicanálise não os resolveria totalmente. Ou talvez resolvesse.
Era uma das ruas que desembocam diante do Cemitério S. João Batista,
com poeira seca, pedras soltas e pretos parados à porta dos botequins.
Os dois andavam na calçada esburacada que mal os continha de tão
estreita. Ela fez um movimento - ele pensou que ela ia atravessar a rua e deu
um passo para segui-la - ela se voltou sem saber de que lado ele estava - ele
recuou procurando-a. Naquele mínimo instante em que se buscaram inquietos,
viraram-se ao mesmo tempo de costas para os ônibus - e ficaram de pé diante
da casa, tendo ainda a procura no rosto.
Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou
talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão “perto”.
Eles mal tinham espaço para olhá-la, imprensados como estavam na calçada
estreita, entre o movimento ameaçador dos ônibus e a imobilidade
absolutamente serena da casa. Não, não era por bombardeio: mas era uma
casa quebrada, como diria uma criança. Era grande, larga e alta como as
casas ensobradadas do Rio antigo. Uma grande casa enraizada.
Com uma indagação muito maior do que a pergunta que tinham no rosto,
eles se haviam voltado incautelosamente ao mesmo tempo, e a casa estava
tão perto como se, saindo do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma súbita
parede. Atrás deles os ônibus, à frente a casa - não havia como não estar ali.
Se recuassem seriam atingidos pelos ônibus, se avançassem esbarrariam na
monstruosa casa. Tinham sido capturados.
A casa era alta, e perto, eles não podiam olhá-la sem ter que levantar
infantilmente a cabeça, o que os tornou de súbito muito pequenos e
transformou a casa em mansão. Era como se jamais alguma coisa estivesse
estado tão perto deles. A casa devia ter tido uma cor. E qualquer que fosse a
cor primitiva das janelas, estas eram agora apenas velhas e sólidas.
Apequenados, eles abriram os olhos espantados: a casa era angustiada.
A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma
construção que pesava no peito dos dois meninos. Um sobrado como quem
leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiúra
pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado?! Ou fora o tempo que
se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento,
aquele silêncio de enforcado tranqüilo? A casa era forte como um boxeur sem
pescoço. E ter a cabeça diretamente ligada aos ombros era a angústia. Eles
olharam a casa como crianças diante de uma escadaria.
Enfim ambos haviam inesperadamente alcançado a meta e estavam
diante da esfinge. Boquiabertos, na extrema união do medo e do respeito e da
palidez, diante daquela verdade. A nua angústia dera um pulo e colocara-se
diante deles - nem ao menos familiar como a palavra que eles tinham se
habituado a usar. Apenas uma casa grossa, tosca, sem pescoço, só aquela
potência antiga.
Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa grande.
E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também a
grande casa.
A moça olhava adormecida. Quanto ao rapaz, seu sétimo sentido
enganchara-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do fio
um mínimo estremecimento de resposta. Mal se movia, com medo de espantar
a própria atenção. A moça ancorara-se no espanto, com medo de sair deste
para o terror de uma descoberta. Mal falassem, e a casa desabaria. O silêncio
de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes eles tinham sido forçados a
olhá-lo, agora, mesmo que lhes avisassem que o caminho estava livre para
fugirem, ali ficariam, presos pelo fascínio e pelo horror. Fixando aquela coisa
erguida tão antes deles nascerem, aquela coisa secular e já esvaziada de
sentido, aquela coisa vinda do passado. Mas e o futuro?! Oh Deus, dai-nos o
nosso futuro! A casa sem olhos, com a potência de um cego. E se tinha olhos,
eram redondos olhos vazios de estátua. Oh Deus, não nos deixeis ser filhos
desse passado vazio, entregai-nos ao futuro. Eles queriam ser filhos. Mas não
dessa endurecida carcaça fatal, eles não compreendiam o passado: oh livrainos
do passado, deixai-nos cumprir o nosso duro dever. Pois não era a
liberdade o que as duas crianças queriam, elas bem queriam ser convencidas e
subjugadas e conduzidas mas teria que ser por alguma coisa mais poderosa
que o grande poder que lhes batia no peito.
A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que
sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! - porque na sua avidez ela era
ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. A moça subitamente
desviou o rosto com uma espécie de grunhido.
Quanto ao rapaz, ele rapidamente perdia pé na vaguidão como se fosse
ficando sem um pensamento. Isso também era resultado da luz da tarde: era
uma luz lívida e sem hora. O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo, e ele
agora não tinha nenhuma ajuda das palavras dos outros: exatamente como
temerariamente aspirara um dia conseguir. Só que não contara com a miséria
que havia em não poder exprimir.
Verdes e nauseados, eles não saberiam exprimir. A casa simbolizava
alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar, mesmo com toda uma vida
de procura de expressão. Procurar a expressão, por uma vida inteira que fosse,
seria em si um divertimento, amargo e perplexo, mas divertimento, e seria uma
divergência que pouco a pouco os afastaria da perigosa verdade - e os
salvaria. Logo eles que, na desesperada esperteza de sobreviver, já tinham
inventado para eles mesmos um futuro: ambos iam ser escritores, e com uma
determinação tão obstinada como se exprimir a alma a suprimisse enfim. E se
não suprimisse, seria um modo de só saber que se mente na solidão do próprio
coração.
Ao passo que com a casa do passado eles não poderiam brincar. Agora,
tão menores que ela, parecia-lhes que tinham apenas brincado de ser moço e
doloroso e de dar a mensagem. Agora, espantados, tinham finalmente o que
haviam perigosa e imprudentemente pedido: eram dois jovens realmente
perdidos. Como diriam as pessoas mais velhas, “eles estavam tendo o que
bem mereciam”. E eram tão culpados como crianças culpadas, tão culpados
como são inocentes os criminosos. Ah, se ainda pudessem apaziguar o mundo
por eles exacerbado, assegurando-lhe: “estávamos apenas brincando! somos
dois impostores!” Mas era tarde. “Rende-te sem condição e faze de ti uma parte
de mim que sou o passado” - dizia-lhes a vida futura. E, por Deus, em nome de
que poderia alguém exigir que tivessem esperança de que o futuro seria deles?
quem?! mas quem se interessava em esclarecer-lhes o mistério, e sem mentir?
havia por acaso alguém trabalhando nesse sentido? Dessa vez, emudecidos
como estavam. nem lhes ocorreria acusar a sociedade.
A moça havia subitamente voltado o rosto com um grunhido, uma espécie
de soluço ou tosse.
“Meio que chorar nessa hora é bem de mulher”, pensou ele do fundo de
sua perdição, sem saber o que queria dizer com “essa hora”. Mas esta foi a
primeira solidez que ele encontrou para si mesmo. Agarrando-se a essa
primeira tábua, pôde voltar cambaleante à tona, e como sempre antes da
moça. Voltou antes dela, e viu uma casa de pé com um cartaz de “Aluga-se”.
Ouviu o ônibus às suas costas, viu uma casa vazia, e ao seu lado a moça com
um rosto doentio, procurando escondê-lo do homem já acordado: ela procurava
por algum motivo ocultar a cara.
Ainda vacilante, ele esperou com polidez que ela se recompusesse.
Esperou vacilante, sim, mas homem. Magro e irremediavelmente moço, sim,
mas homem. Um corpo de homem era a solidez que o recuperava sempre.
Volta e meia, quando precisava muito, ele se tornava um homem. Então, com
mão incerta, acendeu sem naturalidade um cigarro, como se ele fosse os
outros, socorrendo-se dos gestos que a maçonaria dos homens lhe dava como
apoio e caminho. E ela?
Mas a moça saiu de tudo isso pintada com batom, com o ruge meio
manchado, e enfeitada por um colar azul. Plumas que um momento antes
haviam feito parte de uma situação e de um futuro, mas agora era como se ela
não tivesse lavado o rosto antes de dormir e acordasse com as marcas
impudicas de uma orgia anterior. Pois ela, volta e meia, era uma mulher.
Com um cinismo reconfortante, o rapaz olhou-a curioso. E viu que ela não
passava de uma moça.
- Fico por aqui mesmo, disse-lhe então despedindo-se com altivez, ele
que nem sequer tinha mais hora certa de voltar para casa e sentia no bolso a
chave da porta.
Despediram-se e eles, que nunca se apertavam as mãos porque seria
convencional, apertaram-se as mãos, pois ela, na falta de jeito de em tão má
hora ter seios e um colar, ela estendera desastradamente a sua. O contato das
duas mãos úmidas se apalpando sem amor constrangeu o rapaz como uma
operação vergonhosa, ele corou. E ela, com batom e ruge, procurou disfarçar a
própria nudez enfeitada. Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a
seguissem; esquiva na sua humildade de ter uma condição.
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse divertido:
“será possível que mulher possa realmente saber o que é angústia?” E a
dúvida fez com que ele se sentisse muito forte. “Não, mulher servia mesmo era
para outra coisa, isso não se podia negar.” E era de um amigo que ele
precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então limpo e franco, sem nada a
esconder, leal como um homem. De qualquer tremor de terra, ele saía com um
movimento livre para a frente, com a mesma orgulhosa inconseqüência que faz
o cavalo relinchar. Enquanto ela saiu costeando a parede como uma intrusa, já
quase mãe dos filhos que um dia teria, o corpo pressentindo a submissão,
corpo sagrado e impuro a carregar. O rapaz olhou-a, espantado de ter sido
ludibriado pela moça tanto tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que
acabavam de crescer. Sou homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De
cada luta ou repouso, ele saía mais homem, ser homem se alimentava mesmo
daquele vento que agora arrastava poeira pelas ruas do Cemitério S. João
Batista. O mesmo vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se
encolhesse ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua
nudez, esse vento das ruas.
O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com olhos pornográficos e
curiosos que não pouparam nenhum detalhe humilde da moça. A moça que de
súbito pôs-se a correr desesperadamente para não perder o ônibus...
Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como uma doida para
não perder o ônibus, intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco de saia
curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...
Alguma coisa incômoda o desequilibrara. O que era? Um momento de
grande desconfiança o tomava. Mas o que era?! Urgentemente,
inquietantemente: o que era? Ele a vira correr toda ágil mesmo que o coração
da moça, ele bem adivinhava, estivesse pálido. E vira-a, toda cheia de
impotente amor pela humanidade, subir como um macaco no ônibus - e viu-a
depois sentar-se quieta e comportada, recompondo a blusa enquanto esperava
que o ônibus andasse... Seria isso? Mas o que poderia haver nisso que o
enchia de desconfiada atenção? Talvez o fato dela ter corrido à toa, pois o
ônibus ainda não ia partir, havia pois tempo... Ela nem precisava ter corrido...
Mas o que havia nisso tudo que fazia com que ele erguesse as orelhas em
escuta angustiada, numa surdez de quem jamais ouvirá a explicação?
Ele tinha acabado de nascer um homem. Mas, mal assumira o seu
nascimento, e estava também assumindo aquele peso no peito; mal assumira a
sua glória, e uma experiência insondável dava-lhe a primeira futura ruga.
Ignorante, inquieto, mal assumira a masculinidade, e uma nova fome ávida
nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora. Estaria ele
tendo o primeiro medo de que alguma coisa fosse impossível? A moça era um
zero naquele ônibus parado, e no entanto, homem que agora ele era, o rapaz
de súbito precisava se inclinar para aquele nada, para aquela moça. E nem ao
menos inclinar-se de igual para igual, nem ao menos inclinar-se para
conceder... Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para
quê? para lembrar-se de uma cláusula? para que ela ou outra qualquer não o
deixasse ir longe demais e se perder? para que ele sentisse em sobressalto,
como estava sentindo, que havia a possibilidade de erro? Ele precisava dela
com fome para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne
pobre da qual, ao subir no ônibus como um macaco, ela parecia ter feito um
caminho fatal.
Que é! mas afinal que é que está me acontecendo? assustou-se ele.
Nada. Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de fraqueza
e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo.
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse sistema
de duro juízo final, que não permite nem um segundo de incredulidade senão o
ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua - e tudo agora estava estragado
e seco como se ele tivesse a boca cheia de poeira. Agora e enfim sozinho,
estava sem defesa à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam
ensiná-lo a ser um homem. Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na
poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.
In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977
quinta-feira, 15 de julho de 2010
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Já escondi um AMOR!!!!!!!!!!!!!
Já escondi um AMOR com medo de perdê-lo, já perdi um AMOR por escondê-lo.
Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos.
Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso.
Já passei noites chorando até pegar no sono, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem.
Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram.
Já passei horas na frente do espelho tentando descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer sumir.
Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi.
Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto.
Já sorri chorando lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir.
Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam.
Já tive crises de riso quando não podia.
Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva.
Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse.
Já gritei quando deveria calar, já calei quando deveria gritar.
Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros.
Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros.
Já contei piadas e mais piadas sem graça, apenas para ver um amigo feliz.
Já inventei histórias com final feliz para dar esperança a quem precisava.
Já sonhei demais, ao ponto de confundir com a realidade... Já tive medo do escuro, hoje no escuro "me acho, me agacho, fico ali".
Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais.
Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria.
Já corri atrás de um carro, por ele levar embora, quem eu amava.
Já chamei pela mamãe no meio da noite fugindo de um pesadelo. Mas ela não apareceu e foi um pesadelo maior ainda.
Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram... Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim.
Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco q eu vou dizer:
- E daí? EU ADORO VOAR!
Clarice Lispector
Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos.
Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso.
Já passei noites chorando até pegar no sono, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem.
Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram.
Já passei horas na frente do espelho tentando descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer sumir.
Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi.
Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto.
Já sorri chorando lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir.
Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam.
Já tive crises de riso quando não podia.
Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva.
Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse.
Já gritei quando deveria calar, já calei quando deveria gritar.
Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros.
Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros.
Já contei piadas e mais piadas sem graça, apenas para ver um amigo feliz.
Já inventei histórias com final feliz para dar esperança a quem precisava.
Já sonhei demais, ao ponto de confundir com a realidade... Já tive medo do escuro, hoje no escuro "me acho, me agacho, fico ali".
Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais.
Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria.
Já corri atrás de um carro, por ele levar embora, quem eu amava.
Já chamei pela mamãe no meio da noite fugindo de um pesadelo. Mas ela não apareceu e foi um pesadelo maior ainda.
Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram... Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim.
Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Você pode até me empurrar de um penhasco q eu vou dizer:
- E daí? EU ADORO VOAR!
domingo, 11 de julho de 2010
Uma história de tanto amor
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma história de tanto amor
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes
conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo
tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém,
e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais
longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua
arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava
Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela
cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que
considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva
não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem
coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia
eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre
dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era
quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o
dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro
debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um
desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados
assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia
continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava
ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das
galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina
ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem
homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm
misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita)
inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia
perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e
Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia
inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um
destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A
menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso
quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na
gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a
coisa toda tomava:
— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada
demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar
uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um
parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em
vida fora Petronilha. Sua tia informou:
— Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha
não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a
amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com
Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não
gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de
boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de
comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a
gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não
temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida
mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo
num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem
embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das
fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a
morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda
enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte
Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas
intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não
romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de
Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o
destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência
do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha
é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer
bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu
sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim
Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham
feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que
lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e
bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia
Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia
os homens.
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma imagem de prazer
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a
tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e
na
floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada de alturas, e no meio desse
bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada
no chão tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam
realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo com
manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo,
pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. O bom dessa
imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus
olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão.
Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é
saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será
floresta (a floresta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e
este eu conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará ir
para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de
chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho
apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda gostando de minha
intimidade com o leão e as borboletas; nenhum de nós pensa, a gente só
gosta. Também eu não sou em preto e branco; sem que eu me veja, sei que
para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles
(nós não somos inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas
mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A
penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito
por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo
que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para
falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê.
Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar.
Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão
amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim
cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.
In “Para não esquecer.
Editora Rocco. Rio de Janeiro. 1999. p. 36- 37.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma ira
“Esta” - se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra -
“esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão.
Não sei que nome dar ao que me toma, ou ao que estou com voracidade
tomando, senão de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir
clemência a mim mesmo? É a vontade de destruir, como se para este
momento de destruir eu tivesse nascido. Momento que virá ou não, a minha
escolha depende de poder ou não me ouvir. Deus ouve, mas eu me ouvirei? A
força de destruição ainda se contém um instante em mim. Não posso destruir
ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira; então eu quero
destruir a mim, que sou a fonte dessa paixão. Não quero pedir a Deus que me
aplaque, amo tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com o meu pedido,
meu pedido queima, minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia
destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim. No
entanto só a Ele eu poderia pedir que pusesse a mão sobre mim e arriscasse
queimar a Dele. Não me atendas porque meu pedido é tão violento que me
atemoriza. Mas a quem pedir, neste rápido instante de trégua, se já afastei os
homens? Afastei os homens, fui fechando as doçuras de minha natureza a
cada golpe que recebi, e as doçuras negadas foram se enegrecendo como
nuvens simples que vão se fechando em escuridão, e eu abaixo a cabeça à
tempestade. Como seria a ira divina, se esta minha me deixa cego de força
total? Se esta cólera só destruísse a mim. Mas tenho que proteger os outros -
os outros têm sido a fonte de minha esperança. Que faço para não usar esta
onipotência que me toma? o que me direi eu? Senão a verdade, senão a
verdade. Só outra coisa eu conheci tão total e cega e forte como esta minha
vontade de me espojar na violência: a doçura da compaixão. Só isto ainda
posso tentar pôr no outro prato da balança - pois no primeiro prato está o
sangue e o ódio ao sangue e o riso ao sangue que dói. Que estou querendo?
Quero que a cada uma de minhas dores corresponda hoje e agora um ato de
cólera.
“Mas eu sei o que foram as minhas dores. A cólera, é fácil expô-la. Mas a
dor, esta me envergonhava. Porque minha dor vem de que não saí feliz de
meus outros pecados mortais. Minha violência - que é em carne viva e só quer
como pasto a carne viva - esta violência vem de que outras violências vitais
minhas foram esmagadas. Minhas outras violências pecadoras que se
pareciam tanto com um direito meu... No começo elas se pareciam tanto com
minhas maiores suavidades. Eu tinha nascido simplesmente e também
simplesmente quis ir tomando para mim o que queria. E a cada vez que não
podia, a cada vez que era proibido, a cada vez que me negavam, eu sorria e
pensava que era um manso sorriso de resignação. Mas era a dor que se
mascarava em bondade. Eu sabia que era dor errada diante de Deus, e, pior,
diante de mim, quem quer que eu seja. Cada vez que meus pecados não
venciam, eu sofria, mas sem me sentir com direito de sofrer, e tinha que
esconder não apenas a dor, mas sobretudo o que causara a dor. O que estava
sendo pisado em mim? na minha verdade de outrora, o que estava sendo
pisado em mim? Os pecados mortais.
“Os pecados mortais clamavam em mim por mais vida, e clamavam com
vergonha, os pecados mortais em mim pediam o direito de viver. Minha gula
pelo mundo: eu quis comer o mundo, e a fome com que nasci pelo leite, essa
fome quis se estender pelo mundo, e o mundo não se queria comível. Ele se
queria comível, sim, mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a
humildade com que ele se dava. Mas a fome violenta é exigente e orgulhosa, e
quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos
dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples, e eu fui comê-lo com o
meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou
em pedra e ouro aos meus dentes, eu fingi por orgulho que não doía, eu
pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da
própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e
era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo
mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era
a grande alegria de viver - e eu pensava que esta, sim, é livre. Mas como foi
que transformei, sem nem sentir, a alegria de viver na grande luxúria de estar
vivo? No entanto, no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor
pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem
ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não
era uma doçura de amor pelo mundo, era uma avidez de luxúria pelo mundo. E
o mundo de novo se retraiu, e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo
me espantava na minha insônia, sem eu entender que a noite do mundo e a
noite do viver são tão doces que até se dorme, que até se dorme, meu Deus. E
a água, na minha luxúria de viver, a água se derramava pelos dedos antes de
chegar à boca. E eu amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser
salvo pela alegria. Eu não sabia que só o meio-termo não é pecado mortal, eu
tinha vergonha do meio-termo. Os pecados são mortais não porque Deus mata,
mas porque eu morro deles. Eu é que não pude arcar com os pecados mortais.
O que não consegui com eles, é isso que hoje me violenta e a que respondo
com violência. Os meus pobres meios canhestros não me conseguiram nem
terra nem céu, e a fúria me toma. Ah, mas se por um instante eu entender que
a fúria é contra os meus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se
transformará nas minhas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor.
Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor
irrealizado, meu ódio é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo - menos a
vida. E é isso o que não perdôo em mim, e como não suporto não me perdoar,
então não perdôo aos outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida,
quero matá-la. A minha cólera - que é ela senão reivindicação? - a minha
cólera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cólera
é o reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem
orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tanto temi
jurar-me para sempre com essa primeira palavra que mal ouso pronunciar
(amor), que fugi para a violência e para os olhos ensangüentados da paixão.
Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do
“outro” que sempre Te representou. Que rei sou eu, que não se curva? Tenho
que escolher entre a quebra do orgulho e o amor correnteza da ignorância e da
doçura. A minha verdade antiga ainda me serve? Deus proibiu os sete pecados
não por exigência de perfeição, mas apenas por piedade de nós, de mim que,
como os outros, também tento não ser Dele e tento não ser dos outros, e eu sei
que os outros são Ele. Neste instante tenho que escolher entre amar ou ter
ódio. Sei que amar é mais lento, e a urgência me consome. Cobre minha fúria
com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar,
minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou
uma erva que se sente onipotente e se assusta. Tira de mim a falsa
onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique
ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que
aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e
portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só
porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem
de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua
grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma
forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da
amante, do filho. Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento
de não amar.”
in “Para não esquecer” - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma revolta
Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e
nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como
uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso
de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma tarde plena
O sagüim é tão pequeno como um rato, e da mesma cor.
A mulher, depois de se sentar no ônibus e de lançar uma tranqüila vista
de proprietária pelos bancos, engoliu um grito: ao seu lado, na mão de um
homem gordo, estava aquilo que parecia um rato inquieto e que na verdade era
um vivíssimo sagüim. Os primeiros momentos da mulher versus sagüim foram
gastos em procurar sentir que não se tratava de um rato disfarçado.
Quando isso foi conseguido, começaram momentos deliciosos e intensos:
a observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa.
Mas era privilégio da mulher estar ao lado do personagem principal. De
onde estava podia, por exemplo, reparar na minimeza que é uma língua de
saguïm: um risco de lápis vermelho.
E havia os dentes também: quase que se poderiam contar cerca de
milhares de dentes dentro do risco da boca, e cada lasca menor que a outra, e
mais branca. O sagüim não fechou a boca um instante.
Os olhos eram redondos, hipertireóidicos, combinando com um ligeiro
prognatismo - e essa mistura, se lhe dava um ar estranhamente impudico,
formava uma cara meio oferecida de menino de rua, desses que estão
permanentemente resfriados e que ao mesmo tempo chupam bala e fungam o
nariz.
Quando o sagüim deu um pulo no colo da senhora, esta conteve um
frisson, e o prazer encabulado de quem foi eleita.
Mas os passageiros olhavam-na com simpatia, aprovando o
acontecimento, e, um pouco ruborizada, ela aceitou ser a tímida favorita. Não o
acariciou porque não sabia se esse era o gesto a ser feito.
E nem o bicho sofria à míngua de carinho. Na verdade o seu dono, o
homem gordo, tinha por ele um amor sólido e severo, de pai para filho, de dono
para mulher. Era um homem que, sem um sorriso, tinha o chamado coração de
ouro. A expressão de seu rosto era até trágica, como se ele tivesse missão.
Missão de amar? O sagüim era o seu cachorro na vida.
O ônibus, na brisa, como embandeirado, avançava. O sagüim começou a
comer biscoito. O sagüim coçou rapidamente a redonda orelha com a perna
fina de trás. O sagüim guinchou. Pendurou-se na janela, e espiou o mais
depressa que podia - despertando nos ônibus opostos caras que se
espantavam e que não tinham tempo de averiguar se tinham mesmo visto o
que tinham visto.
Enquanto isso, perto da senhora, uma outra senhora contou a outra
senhora que tinha um gato. Quem tinha posses de amor, contou.
Foi nesse ambiente de família feliz que um caminhão quis passar à frente
do ônibus, houve quase encontro fatal, os gritos. Todos saltaram depressa. A
senhora, atrasada, com hora marcada, tomou um táxi.
Só no táxi lembrou-se de novo do sagüim.
E lamentou com um sorriso sem graça que - sendo os dias que correm
tão cheios de notícias nos jornais e com tão poucas para ela - tivessem os
acontecimentos se distribuído tão mal a ponto de um sagüim e um quase
desastre sucederem na mesma hora.
“Aposto” - pensou - “que nada mais me acontecerá durante muito tempo,
aposto que agora vou entrar no tempo das vacas magras”. Que era em geral
seu tempo.
Mas nesse mesmo dia aconteceram outras coisas. Todas até que dentro
da categoria de bens declaráveis. Só que não eram comunicáveis. Essa mulher
era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem
consigo própria.
Mas assim é. E jamais se soube de um sagüim que tenha deixado de
nascer, viver e morrer - só por não se entender ou não ser entendido.
De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma vez irei...
Uma vez irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma desta vez. O espírito,
eu o terei entregue à família e aos amigos, com recomendações. Não será
difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não
será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei,
qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através
de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão.
De tigre, eu preferiria...
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Vida
Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que
mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la.
Sonhe com aquilo que você quiser. Vá para onde você queira ir.
Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só
temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la
forte.
Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o
melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade
aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para
aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a
importância das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do
passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar, duram uma
eternidade.
A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Vida ao natural
Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela percebeu que,
além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado.
O acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como
numa fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o homem. Ele,
o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe agradece: ele atiça o fogo na
lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela - que é sempre
inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades - pois ela nem
se lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem
para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra a sua missão. O
mais que ela faz é às vezes instigá-lo: “aquela acha”, diz-lhe, “aquela acha
ainda não pegou”. E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o
esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha. Não a comando seu, que é a
mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem. A outra
mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão
dele, sabe que quer, e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não,
ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca
dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então
sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então,
ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la
nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro – 1994
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma história de tanto amor
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes
conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo
tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém,
e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais
longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua
arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava
Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela
cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que
considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva
não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem
coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia
eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre
dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era
quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o
dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro
debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um
desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados
assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia
continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava
ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das
galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina
ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem
homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm
misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita)
inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia
perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e
Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia
inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um
destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A
menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso
quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na
gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a
coisa toda tomava:
— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada
demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar
uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um
parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em
vida fora Petronilha. Sua tia informou:
— Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha
não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a
amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com
Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não
gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de
boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de
comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a
gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não
temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida
mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo
num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem
embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das
fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a
morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda
enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte
Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas
intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não
romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de
Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o
destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência
do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha
é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer
bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu
sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim
Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham
feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que
lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e
bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia
Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia
os homens.
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma imagem de prazer
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a
tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e
na
floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada de alturas, e no meio desse
bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada
no chão tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam
realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo com
manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo,
pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. O bom dessa
imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus
olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão.
Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é
saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será
floresta (a floresta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e
este eu conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará ir
para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de
chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho
apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda gostando de minha
intimidade com o leão e as borboletas; nenhum de nós pensa, a gente só
gosta. Também eu não sou em preto e branco; sem que eu me veja, sei que
para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles
(nós não somos inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas
mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A
penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito
por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo
que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para
falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê.
Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar.
Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão
amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim
cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.
In “Para não esquecer.
Editora Rocco. Rio de Janeiro. 1999. p. 36- 37.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma ira
“Esta” - se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra -
“esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão.
Não sei que nome dar ao que me toma, ou ao que estou com voracidade
tomando, senão de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir
clemência a mim mesmo? É a vontade de destruir, como se para este
momento de destruir eu tivesse nascido. Momento que virá ou não, a minha
escolha depende de poder ou não me ouvir. Deus ouve, mas eu me ouvirei? A
força de destruição ainda se contém um instante em mim. Não posso destruir
ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira; então eu quero
destruir a mim, que sou a fonte dessa paixão. Não quero pedir a Deus que me
aplaque, amo tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com o meu pedido,
meu pedido queima, minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia
destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim. No
entanto só a Ele eu poderia pedir que pusesse a mão sobre mim e arriscasse
queimar a Dele. Não me atendas porque meu pedido é tão violento que me
atemoriza. Mas a quem pedir, neste rápido instante de trégua, se já afastei os
homens? Afastei os homens, fui fechando as doçuras de minha natureza a
cada golpe que recebi, e as doçuras negadas foram se enegrecendo como
nuvens simples que vão se fechando em escuridão, e eu abaixo a cabeça à
tempestade. Como seria a ira divina, se esta minha me deixa cego de força
total? Se esta cólera só destruísse a mim. Mas tenho que proteger os outros -
os outros têm sido a fonte de minha esperança. Que faço para não usar esta
onipotência que me toma? o que me direi eu? Senão a verdade, senão a
verdade. Só outra coisa eu conheci tão total e cega e forte como esta minha
vontade de me espojar na violência: a doçura da compaixão. Só isto ainda
posso tentar pôr no outro prato da balança - pois no primeiro prato está o
sangue e o ódio ao sangue e o riso ao sangue que dói. Que estou querendo?
Quero que a cada uma de minhas dores corresponda hoje e agora um ato de
cólera.
“Mas eu sei o que foram as minhas dores. A cólera, é fácil expô-la. Mas a
dor, esta me envergonhava. Porque minha dor vem de que não saí feliz de
meus outros pecados mortais. Minha violência - que é em carne viva e só quer
como pasto a carne viva - esta violência vem de que outras violências vitais
minhas foram esmagadas. Minhas outras violências pecadoras que se
pareciam tanto com um direito meu... No começo elas se pareciam tanto com
minhas maiores suavidades. Eu tinha nascido simplesmente e também
simplesmente quis ir tomando para mim o que queria. E a cada vez que não
podia, a cada vez que era proibido, a cada vez que me negavam, eu sorria e
pensava que era um manso sorriso de resignação. Mas era a dor que se
mascarava em bondade. Eu sabia que era dor errada diante de Deus, e, pior,
diante de mim, quem quer que eu seja. Cada vez que meus pecados não
venciam, eu sofria, mas sem me sentir com direito de sofrer, e tinha que
esconder não apenas a dor, mas sobretudo o que causara a dor. O que estava
sendo pisado em mim? na minha verdade de outrora, o que estava sendo
pisado em mim? Os pecados mortais.
“Os pecados mortais clamavam em mim por mais vida, e clamavam com
vergonha, os pecados mortais em mim pediam o direito de viver. Minha gula
pelo mundo: eu quis comer o mundo, e a fome com que nasci pelo leite, essa
fome quis se estender pelo mundo, e o mundo não se queria comível. Ele se
queria comível, sim, mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a
humildade com que ele se dava. Mas a fome violenta é exigente e orgulhosa, e
quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos
dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples, e eu fui comê-lo com o
meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou
em pedra e ouro aos meus dentes, eu fingi por orgulho que não doía, eu
pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da
própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e
era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo
mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era
a grande alegria de viver - e eu pensava que esta, sim, é livre. Mas como foi
que transformei, sem nem sentir, a alegria de viver na grande luxúria de estar
vivo? No entanto, no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor
pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem
ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não
era uma doçura de amor pelo mundo, era uma avidez de luxúria pelo mundo. E
o mundo de novo se retraiu, e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo
me espantava na minha insônia, sem eu entender que a noite do mundo e a
noite do viver são tão doces que até se dorme, que até se dorme, meu Deus. E
a água, na minha luxúria de viver, a água se derramava pelos dedos antes de
chegar à boca. E eu amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser
salvo pela alegria. Eu não sabia que só o meio-termo não é pecado mortal, eu
tinha vergonha do meio-termo. Os pecados são mortais não porque Deus mata,
mas porque eu morro deles. Eu é que não pude arcar com os pecados mortais.
O que não consegui com eles, é isso que hoje me violenta e a que respondo
com violência. Os meus pobres meios canhestros não me conseguiram nem
terra nem céu, e a fúria me toma. Ah, mas se por um instante eu entender que
a fúria é contra os meus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se
transformará nas minhas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor.
Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor
irrealizado, meu ódio é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo - menos a
vida. E é isso o que não perdôo em mim, e como não suporto não me perdoar,
então não perdôo aos outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida,
quero matá-la. A minha cólera - que é ela senão reivindicação? - a minha
cólera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cólera
é o reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem
orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tanto temi
jurar-me para sempre com essa primeira palavra que mal ouso pronunciar
(amor), que fugi para a violência e para os olhos ensangüentados da paixão.
Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do
“outro” que sempre Te representou. Que rei sou eu, que não se curva? Tenho
que escolher entre a quebra do orgulho e o amor correnteza da ignorância e da
doçura. A minha verdade antiga ainda me serve? Deus proibiu os sete pecados
não por exigência de perfeição, mas apenas por piedade de nós, de mim que,
como os outros, também tento não ser Dele e tento não ser dos outros, e eu sei
que os outros são Ele. Neste instante tenho que escolher entre amar ou ter
ódio. Sei que amar é mais lento, e a urgência me consome. Cobre minha fúria
com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar,
minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou
uma erva que se sente onipotente e se assusta. Tira de mim a falsa
onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique
ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que
aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e
portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só
porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem
de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua
grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma
forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da
amante, do filho. Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento
de não amar.”
in “Para não esquecer” - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma revolta
Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e
nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como
uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso
de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma tarde plena
O sagüim é tão pequeno como um rato, e da mesma cor.
A mulher, depois de se sentar no ônibus e de lançar uma tranqüila vista
de proprietária pelos bancos, engoliu um grito: ao seu lado, na mão de um
homem gordo, estava aquilo que parecia um rato inquieto e que na verdade era
um vivíssimo sagüim. Os primeiros momentos da mulher versus sagüim foram
gastos em procurar sentir que não se tratava de um rato disfarçado.
Quando isso foi conseguido, começaram momentos deliciosos e intensos:
a observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa.
Mas era privilégio da mulher estar ao lado do personagem principal. De
onde estava podia, por exemplo, reparar na minimeza que é uma língua de
saguïm: um risco de lápis vermelho.
E havia os dentes também: quase que se poderiam contar cerca de
milhares de dentes dentro do risco da boca, e cada lasca menor que a outra, e
mais branca. O sagüim não fechou a boca um instante.
Os olhos eram redondos, hipertireóidicos, combinando com um ligeiro
prognatismo - e essa mistura, se lhe dava um ar estranhamente impudico,
formava uma cara meio oferecida de menino de rua, desses que estão
permanentemente resfriados e que ao mesmo tempo chupam bala e fungam o
nariz.
Quando o sagüim deu um pulo no colo da senhora, esta conteve um
frisson, e o prazer encabulado de quem foi eleita.
Mas os passageiros olhavam-na com simpatia, aprovando o
acontecimento, e, um pouco ruborizada, ela aceitou ser a tímida favorita. Não o
acariciou porque não sabia se esse era o gesto a ser feito.
E nem o bicho sofria à míngua de carinho. Na verdade o seu dono, o
homem gordo, tinha por ele um amor sólido e severo, de pai para filho, de dono
para mulher. Era um homem que, sem um sorriso, tinha o chamado coração de
ouro. A expressão de seu rosto era até trágica, como se ele tivesse missão.
Missão de amar? O sagüim era o seu cachorro na vida.
O ônibus, na brisa, como embandeirado, avançava. O sagüim começou a
comer biscoito. O sagüim coçou rapidamente a redonda orelha com a perna
fina de trás. O sagüim guinchou. Pendurou-se na janela, e espiou o mais
depressa que podia - despertando nos ônibus opostos caras que se
espantavam e que não tinham tempo de averiguar se tinham mesmo visto o
que tinham visto.
Enquanto isso, perto da senhora, uma outra senhora contou a outra
senhora que tinha um gato. Quem tinha posses de amor, contou.
Foi nesse ambiente de família feliz que um caminhão quis passar à frente
do ônibus, houve quase encontro fatal, os gritos. Todos saltaram depressa. A
senhora, atrasada, com hora marcada, tomou um táxi.
Só no táxi lembrou-se de novo do sagüim.
E lamentou com um sorriso sem graça que - sendo os dias que correm
tão cheios de notícias nos jornais e com tão poucas para ela - tivessem os
acontecimentos se distribuído tão mal a ponto de um sagüim e um quase
desastre sucederem na mesma hora.
“Aposto” - pensou - “que nada mais me acontecerá durante muito tempo,
aposto que agora vou entrar no tempo das vacas magras”. Que era em geral
seu tempo.
Mas nesse mesmo dia aconteceram outras coisas. Todas até que dentro
da categoria de bens declaráveis. Só que não eram comunicáveis. Essa mulher
era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem
consigo própria.
Mas assim é. E jamais se soube de um sagüim que tenha deixado de
nascer, viver e morrer - só por não se entender ou não ser entendido.
De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma vez irei...
Uma vez irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma desta vez. O espírito,
eu o terei entregue à família e aos amigos, com recomendações. Não será
difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não
será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei,
qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através
de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão.
De tigre, eu preferiria...
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Vida
Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que
mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la.
Sonhe com aquilo que você quiser. Vá para onde você queira ir.
Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só
temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la
forte.
Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o
melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade
aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para
aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a
importância das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do
passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar, duram uma
eternidade.
A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Vida ao natural
Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela percebeu que,
além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado.
O acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como
numa fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o homem. Ele,
o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe agradece: ele atiça o fogo na
lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela - que é sempre
inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades - pois ela nem
se lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem
para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra a sua missão. O
mais que ela faz é às vezes instigá-lo: “aquela acha”, diz-lhe, “aquela acha
ainda não pegou”. E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o
esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha. Não a comando seu, que é a
mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem. A outra
mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão
dele, sabe que quer, e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não,
ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca
dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então
sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então,
ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la
nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro – 1994
Os obedientes
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Os obedientes
Um casal viveu muitos anos junto. Sua harmonia conjugal era
aparentemente perfeita. Mas não tinham emoções. Cumpriam com perfeição a
rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de
um casal, inclusive quanto à fidelidade.
Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de
inconveniente.
Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns
sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar: ele
imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro
homem a salvaria.
Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente
da frente.
Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade,
com um dente quebrado, e os próprios olhos...” Então, jogou-se pela janela.
O marido continuou existindo; “seco inesperadamente o leito do rio,
andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair
de bruços mais adiante.”
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Perdoando Deus
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios,
nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na
verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava
sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu
me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo,
sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo
isso “fosse mesmo” o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de
sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria
acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas
muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que
se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e
reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim
como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do
mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um
segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo
estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo,
de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a
andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os
dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a
contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantavame
que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me
tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava
Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que
dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu
o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim
a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não
era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante.
Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina
e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me
devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem
pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a
me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era
bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável
como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer.
Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus
Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me
esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança
nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais
estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva
essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim
é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não
guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de
Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por
carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou
contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por
isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha
pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava
mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava
que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as
incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido
carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem
compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em
oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é
brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não
sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É
porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não
é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que
me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito
possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria
o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar
um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha
pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o
que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o
formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é
pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo
que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto
quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós
mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais
nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache
delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive
os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o
rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida.
Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de
tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho
de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou
ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu,
que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu
contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me
habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse.
Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou
tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim
mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um
Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida
maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Por não estarem distraídos...
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando
se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de
boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter
esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo,
falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a
alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se
tocavam, e ao toque — a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de
escuras — e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco
mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles
quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O
cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que
ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo
errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com
aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção,
só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e
duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome;
porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se
estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta
chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os
fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Prece
Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à
minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já
estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a
entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria
modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta
seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que
também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no
entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o
mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu
mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse
mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós
enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão
que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim
mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu
perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana
amada para apertar a minha, amém.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Precisão
O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fracção de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exactidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exactidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
“Precisa-se”
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e
oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou
mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente
que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se
extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É
urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até
parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da
noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica
tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que
passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste
porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se
transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a
humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com
todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor
da copa e da cozinha, e da sala de estar.
P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num
anúncio a dilarecerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma
alegria até mesmo divina para dar.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Restos do Carnaval
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou
para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde
esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um
véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia
que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia
se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o
mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as
ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como
se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta
em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um
baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me
ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde
morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu
ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um
lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever.
Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me
agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada
já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário
porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto
humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de
escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato
indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e
príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com
os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,
ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma
de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam
tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos
durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu
sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma
infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando
também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu
escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não
conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir
pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome
da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel
crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de
uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e
se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu
pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel
crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo
apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que
sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o
que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu
teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira
tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo
da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se
derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma
chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito
anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah!
Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir
por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que
sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que
ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos
enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não
passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde:
com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei.
No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge -
minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em
casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo
vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que
cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa,
atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros
me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me
penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas
histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam
pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma
simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um
palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às
vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave
de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é
porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim
significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa
mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos
já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem
falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que
enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
in "Felicidade Clandestina"
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Rifa-se um coração
Um coração idealista.
Um coração como poucos,
Um coração a moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar
peças em seu usuário.
Rifa-se um coração que na verdade está
um pouco usado,
meio calejado, muito machucado,
e que teima em cultivar sonhos e alimentar ilusões.
Um pouco inconseqüente e que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que
Tim Maia estava certo quando escreveu e
tão bem cantou...
“...NÃO QUERO DINHEIRO, QUERO AMOR SINCERO, É ISSO QUE EU
ESPERO...”
Um idealista, um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende,
que não endurece e mantém sempre viva a
esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato,
que comanda o racional sendo louco
o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando relações
e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer
sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra que briga, se expõe
Perde o juízo por completo em nome
de causas e paixões.
Sai do sério e as vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este mesmo coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que
abre sorrisos tão largos
que quase dá para engolir as orelhas,
mas que também arranca lagrimas e faz
murchar meu rosto.
Um coração para ser alugado ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado, apenas indicado para quem
quer viver intensamente,
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra
sem armaduras e deixa louco seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer a São Pedro:
- “O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi
este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer.”
“Rifa-se um coração,
ou mesmo troca-se por outro que tenha um
pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser
que o abriga tão carinhosamente.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que
ainda não foi adotado,
provavelmente, por ainda se recusar a cultivar
ares selvagens ou racionais,
por não querer perder seu estilo e sua
verdadeira identidade.
Oferece-se um coração vadio, sem raça,
sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos,
que mesmo estando no mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário
a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Saudade
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se
absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma
unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Se tudo existe é porque sou
Se tudo existe é porque sou. Mas por que esse mal estar? É porque não
estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei
qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas
alguma coisa está errada e dá mal estar. No entanto estou sendo franca e meu
jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por
natureza. O que há então? Só sei que não quero a impostura. Recuso-me. Eu
me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Silêncio
É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se
em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou
inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável
dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se
afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo.
Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio
sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem
fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a
possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra
e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o
vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo
embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma
continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode
falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se
diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas
com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem,
fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já
vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as
folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça
com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito
atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que
passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio.
Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no
começo o silêncio parece aguardar uma resposta - como ardemos por ser
chamados a responder - cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez
apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o
silêncio te julga - como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem
as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a
indignidade. Tão suave é para os ter humano enfim mostrar sua indignidade e
ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de
nascença.
Até que se descobre - nem a sua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro de
cabeceira cair no chão. Mas, horror - o livro cai dentro do silêncio e se perde na
muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse?
Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.
Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele,
nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se
espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se
estivéssimos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar
num navio. e este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais
do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é
vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho
de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se
apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente
nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é
comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno
silêncio.
Se não há coragem, que não se entre. que se espere o resto da escuridão
diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de
dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro,
duas coisas que não se vêem na escuridão. Que se espere. Não o fim do
silêncio, mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois
quando menos se espera pode-se reconhecê-lo - de repente. Ao atravessar a
rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e
outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os
ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia - ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Sobre a escrita...
Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina
é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A
palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com
elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que
atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra
materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro
dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é
identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo
- é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei
porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente
uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto
não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa
palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca
fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a
eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma
fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o
som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra
falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos
elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.
Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao
mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou
simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas
coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor
acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto
essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de
um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.
Texto extraído do site "Sobrado".
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Solidão
Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Sonhe
Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância
das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Talvez assim seja
Por outro lado, estou hoje um pouco cansada e é sobre o prazer do
cansaço dolorido que vou falar. Todo prazer intenso toca no limiar da dor. Isso
é bom. O sono, quando vem, é como um leve desmaio, um desmaio de amor.
Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o
sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem
morre às vezes precisa muito.
Será que morrer é o último prazer terreno?
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Tempestade de almas
Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha
da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente.
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas
em lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto. Inútil enquanto a
olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse
germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida. Nada
mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhes
contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo
cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante
mortal. O objeto cadeira sempre me interessou. Olho esta que é antiga,
comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior
simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho. Amo os
objetos à medida que eles não me amam. Mas se não compreendo o que
escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho
uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amordaçaram a boca. O que é
que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?" Se desse a loucura da
franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma
pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja
determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem
no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do
mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta
tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não
vejo nem sinto. A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a
condição humana que é cercada de música. Aliás, música é uma abstração do
pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Só posso escrever se
estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo império e
dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto. O futuro é meu
enquanto eu viver. No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada
escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marli de Oliveira, eu não
escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as
circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se
fez, far-se-á um dia? O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é
humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o
humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo,
nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse:
mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é
espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que
é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas mentiras
sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a
mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas,
e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo. A Lua é,
como diria Paul Éluard, éclatante de silence. Hoje não sei se vamos ter Lua
visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu. Uma vez eu olhei de noite
para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de
tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo. Não há
lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da
natureza. Da natureza humana também. O que seria do mundo, do cosmos, se
o homem não existisse. Se eu pudesse escrever sempre assim como estou
escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa
brainstorm. Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo.
Inventou então um maior conforto para o seu corpo. Depois os séculos se
seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira,
pois usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um
brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar. O monstro sagrado
morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha. Bem sei que terei
de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e
sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Tentação
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas
horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina
flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua,
só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não
bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a
momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer
de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra
desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser
ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava
sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era
uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor
conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em
Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina
acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset
lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro
ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele
fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria.
Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem
sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se
comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem
falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução
para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos
cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora
carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do
Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à
gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria
quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal
despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o
acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe
compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam,
debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
in "Felicidade Clandestina"
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Teu segredo
Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar.
Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então
o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do
que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o
meu.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Trabalho humano
Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida: para compreender
minha não inteligência fui obrigada a tornar-me inteligente. (Usa-se a
inteligência para entender a não inteligência. Só que depois o instrumento
continua a ser usado - e não podemos colher as coisas de mãos limpas.)
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Um caso complicado
Pois é.
Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, amante da mulher do
médico que tratava da filha, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam e a
mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o
amante podia entrar ou era toalha de cor e ele não entrava.
Mas estou me confundindo toda ou é o caso de tão enrolado que se puder
vou desenrolar. As realidades dele são inventadas. Peço desculpa porque além
de contar os fatos eu também adivinho e o que adivinho aqui escrevo. Eu
adivinho a realidade. Mas esta história não é de minha seara. É da safra de
quem pode mais que eu.
Pois a filha teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa
Jandira de 17 anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava
noiva. Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não viu
que era patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente
desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria. Todos,
inclusive a mãe sofrida da moça, imploraram ao noivo que fingisse ainda amála,
o que - diziam-lhe - não era tão penoso porque seria a curto prazo: é que a
noiva tinha vida a curto prazo.
E daí a três meses - como se cumprisse promessa de não pesar nas
débeis idéias do noivo - daí a três meses morreu, linda, de cabelos belos,
inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança
tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não, não sei
como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei, quem sabe se não
tão escura. A morte, quero dizer.
O noivo que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece
morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com
esta continuou, pouco ligando.
Bem. Essa mulher lá um dia teve ciúmes. E - tão requintada como Nelson
Rodrigues que não negligencia detalhes cruéis. Mas onde estava eu, que me
perdi? Só começando tudo de novo, e em outra linha e parágrafo para melhor
começar.
Bem. A mulher teve ciúmes e enquanto o Bastos dormia despejou água
fervendo do bico da chaleira dentro do ouvido dele que só teve tempo de dar
um urro antes de desmaiar, urro esse que podemos adivinhar, era o pior grito
que tinha. Bastos foi levado para o hospital e ficou entre vida e morte, esta em
luta feroz com aquela.
A virago ciumenta pegou um ano e pouco de cadeia. De onde saiu para
encontrar-se - adivinhem com quem? pois foi encontrar-se com o Bastos. A
essa altura um Bastos muito mirrado e, é claro, surdo para sempre, logo ele
que não perdoara defeito físico.
O que aconteceu? Pois voltaram a viver juntos, amor para sempre.
Enquanto isso a menina de 17 anos morta há muito tempo, só deixando
vestígios na mãe. E se me lembrei fora de hora da mocinha é pelo amor que
sinto.
Aí é que entra o pai dela, como quem não quer nada. Continuou sendo
amante da mulher do médico que tratara de sua filha com devoção. Filha,
quero dizer, do amante. E todos sabiam, o médico e a mãe da ex-noiva. Acho
que me perdi de novo, está confuso, mas que posso fazer?
O médico mesmo sabendo ser o pai da mocinha amante de sua mulher
cuidara muito da noivinha espaventada demais com o escuro de que falei. A
mulher do pai, portanto mãe da ex-noivinha, sabia das elegâncias adulterinas
do marido que usava relógio de ouro e anel que era jóia, alfinete de gravata de
brilhante, negociante abastado, como se diz, pois as gentes respeitam e
cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, está certo? Ele, o pai da
moça, vestido com terno verde e camisa cor-de-rosa de listrinhas. Como é que
eu sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com a adivinhação
imaginadora. Eu sei, e pronto.
Não posso esquecer de um detalhe. É o seguinte: o amante tinha na
frente um dentinho de ouro. E cheirava a alho, toda sua aura era puro alho, e a
amante nem ligava, queria era ter amante, com ou sem cheiro de comida.
Como é que eu sei? Ora, sabendo.
Não sei que fim levaram essas pessoas, não soube mais notícias.
Desagregaram-se? pois é história antiga, e talvez tenha já havido mortes entre
elas, as pessoas.
Acrescento um dado importante e que, não sei por que, explica o
nascedouro maldito da história toda: esta se passou em Niterói, com as tábuas
do cais sempre úmidas e escuras e suas barcas de vai-vém. Niterói é lugar
misterioso e tem casas velhas, enegrecidas. E lá pode acontecer água
fervendo no ouvido do amante? Não sei.
O que fazer desta história? Também não sei, dou-a de presente a quem
quiser, pois estou enjoada dela. Demais até. Às vezes me dá enjôo de gente.
Depois passa e fico de novo curiosa e atenta.
E só.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma amizade sincera
Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no
último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora.
Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não
confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não
podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro,
marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes
como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de
comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada
tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que
o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência
de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós.
Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer.
Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou
a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já
estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas
namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de
seu amores. Experimentávamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos
logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a
ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a
sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio.
Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza
revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si
mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele
morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar
em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma.
Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente
perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de
braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades
estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos
até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e
com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos
espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa
amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer
desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os
vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia
oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não
precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos
amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser
uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do
outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos
sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um
para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que
nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo
teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós
a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade
de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de
minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase
de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não
houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados:
contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não
aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse
o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam,
por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe
afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás,
nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro
àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar
também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito de passagem, com
vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra
que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a
alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também
ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto.
Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que
não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos
sinceros.
In Felicidade Clandestina.
Rio de Janeiro, Rocco, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma esperança
Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes
verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a
outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção
dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso.
Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar
diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa
parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e
verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa
para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os
quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros,
três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na
Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar
devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um
modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um
quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha. Andando
pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a
esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que
comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem
saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com
ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei
sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz.
Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a
empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da
esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa
esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer.
Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho
verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de
pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que
esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só
visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a
delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?”
Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse
nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que
não aconteceu nada.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma galinha
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove
horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou
magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o
peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante
ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no
terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá
ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.
A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de
uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o
telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo.
A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido
mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida
a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum
auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido.
E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por
um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um
ser.
Ë verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que
havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão
igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em
triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com
certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e
indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida
que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se
sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu
coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de
tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e
assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o
nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem
parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem
alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem
propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça
de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na
minha vida!
- Eu também! jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com
a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper
a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer
que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa.
Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos,
usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga - e circulava
pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho
susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha
que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às
fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem
nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no
descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a
mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Os obedientes
Um casal viveu muitos anos junto. Sua harmonia conjugal era
aparentemente perfeita. Mas não tinham emoções. Cumpriam com perfeição a
rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de
um casal, inclusive quanto à fidelidade.
Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de
inconveniente.
Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns
sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar: ele
imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro
homem a salvaria.
Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente
da frente.
Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade,
com um dente quebrado, e os próprios olhos...” Então, jogou-se pela janela.
O marido continuou existindo; “seco inesperadamente o leito do rio,
andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair
de bruços mais adiante.”
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Perdoando Deus
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios,
nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na
verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava
sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu
me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo,
sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo
isso “fosse mesmo” o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de
sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria
acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas
muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que
se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e
reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim
como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do
mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um
segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo
estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo,
de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a
andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os
dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a
contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantavame
que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me
tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava
Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que
dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu
o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim
a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não
era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante.
Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina
e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me
devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem
pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a
me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era
bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável
como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer.
Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus
Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me
esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança
nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais
estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva
essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim
é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não
guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de
Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por
carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou
contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por
isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha
pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava
mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava
que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as
incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido
carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem
compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em
oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é
brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não
sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É
porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não
é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que
me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito
possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria
o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar
um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha
pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o
que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o
formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é
pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo
que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto
quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós
mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais
nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache
delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive
os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o
rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida.
Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de
tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho
de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou
ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu,
que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu
contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me
habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse.
Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou
tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim
mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um
Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida
maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Por não estarem distraídos...
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando
se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de
boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter
esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo,
falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a
alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se
tocavam, e ao toque — a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de
escuras — e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco
mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles
quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O
cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que
ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo
errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com
aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção,
só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e
duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome;
porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se
estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta
chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os
fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Prece
Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à
minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já
estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a
entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria
modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta
seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que
também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no
entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o
mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu
mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse
mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós
enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão
que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim
mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu
perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana
amada para apertar a minha, amém.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Precisão
O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fracção de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exactidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exactidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
“Precisa-se”
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e
oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou
mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente
que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se
extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É
urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até
parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da
noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica
tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que
passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste
porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se
transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a
humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com
todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor
da copa e da cozinha, e da sala de estar.
P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num
anúncio a dilarecerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma
alegria até mesmo divina para dar.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Restos do Carnaval
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou
para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde
esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um
véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia
que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia
se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o
mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as
ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como
se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta
em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um
baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me
ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde
morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu
ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um
lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever.
Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me
agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada
já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário
porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto
humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de
escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato
indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e
príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com
os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,
ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma
de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam
tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos
durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu
sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma
infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando
também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu
escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não
conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir
pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome
da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel
crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de
uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e
se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu
pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel
crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo
apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que
sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o
que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu
teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira
tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo
da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se
derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma
chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito
anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah!
Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir
por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que
sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que
ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos
enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não
passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde:
com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei.
No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge -
minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em
casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo
vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que
cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa,
atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros
me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me
penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas
histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam
pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma
simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um
palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às
vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave
de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é
porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim
significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa
mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos
já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem
falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que
enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
in "Felicidade Clandestina"
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Rifa-se um coração
Um coração idealista.
Um coração como poucos,
Um coração a moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar
peças em seu usuário.
Rifa-se um coração que na verdade está
um pouco usado,
meio calejado, muito machucado,
e que teima em cultivar sonhos e alimentar ilusões.
Um pouco inconseqüente e que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que
Tim Maia estava certo quando escreveu e
tão bem cantou...
“...NÃO QUERO DINHEIRO, QUERO AMOR SINCERO, É ISSO QUE EU
ESPERO...”
Um idealista, um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende,
que não endurece e mantém sempre viva a
esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato,
que comanda o racional sendo louco
o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando relações
e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer
sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra que briga, se expõe
Perde o juízo por completo em nome
de causas e paixões.
Sai do sério e as vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este mesmo coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que
abre sorrisos tão largos
que quase dá para engolir as orelhas,
mas que também arranca lagrimas e faz
murchar meu rosto.
Um coração para ser alugado ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado, apenas indicado para quem
quer viver intensamente,
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra
sem armaduras e deixa louco seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer a São Pedro:
- “O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi
este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer.”
“Rifa-se um coração,
ou mesmo troca-se por outro que tenha um
pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser
que o abriga tão carinhosamente.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que
ainda não foi adotado,
provavelmente, por ainda se recusar a cultivar
ares selvagens ou racionais,
por não querer perder seu estilo e sua
verdadeira identidade.
Oferece-se um coração vadio, sem raça,
sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos,
que mesmo estando no mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário
a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Saudade
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se
absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma
unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Se tudo existe é porque sou
Se tudo existe é porque sou. Mas por que esse mal estar? É porque não
estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei
qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas
alguma coisa está errada e dá mal estar. No entanto estou sendo franca e meu
jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por
natureza. O que há então? Só sei que não quero a impostura. Recuso-me. Eu
me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Silêncio
É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se
em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou
inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável
dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se
afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo.
Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio
sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem
fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a
possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra
e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o
vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo
embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma
continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode
falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se
diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas
com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem,
fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já
vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as
folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça
com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito
atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que
passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio.
Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no
começo o silêncio parece aguardar uma resposta - como ardemos por ser
chamados a responder - cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez
apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o
silêncio te julga - como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem
as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a
indignidade. Tão suave é para os ter humano enfim mostrar sua indignidade e
ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de
nascença.
Até que se descobre - nem a sua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro de
cabeceira cair no chão. Mas, horror - o livro cai dentro do silêncio e se perde na
muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse?
Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.
Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele,
nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se
espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se
estivéssimos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar
num navio. e este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais
do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é
vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho
de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se
apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente
nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é
comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno
silêncio.
Se não há coragem, que não se entre. que se espere o resto da escuridão
diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de
dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro,
duas coisas que não se vêem na escuridão. Que se espere. Não o fim do
silêncio, mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois
quando menos se espera pode-se reconhecê-lo - de repente. Ao atravessar a
rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e
outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os
ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia - ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Sobre a escrita...
Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina
é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A
palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com
elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que
atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra
materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro
dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é
identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo
- é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei
porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente
uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto
não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa
palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca
fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a
eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma
fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o
som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra
falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos
elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.
Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao
mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou
simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas
coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor
acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto
essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de
um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.
Texto extraído do site "Sobrado".
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Solidão
Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Sonhe
Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância
das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Talvez assim seja
Por outro lado, estou hoje um pouco cansada e é sobre o prazer do
cansaço dolorido que vou falar. Todo prazer intenso toca no limiar da dor. Isso
é bom. O sono, quando vem, é como um leve desmaio, um desmaio de amor.
Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o
sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem
morre às vezes precisa muito.
Será que morrer é o último prazer terreno?
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Tempestade de almas
Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha
da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente.
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas
em lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto. Inútil enquanto a
olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse
germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida. Nada
mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhes
contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo
cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante
mortal. O objeto cadeira sempre me interessou. Olho esta que é antiga,
comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior
simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho. Amo os
objetos à medida que eles não me amam. Mas se não compreendo o que
escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho
uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amordaçaram a boca. O que é
que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?" Se desse a loucura da
franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma
pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja
determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem
no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do
mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta
tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não
vejo nem sinto. A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a
condição humana que é cercada de música. Aliás, música é uma abstração do
pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Só posso escrever se
estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo império e
dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto. O futuro é meu
enquanto eu viver. No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada
escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marli de Oliveira, eu não
escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as
circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se
fez, far-se-á um dia? O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é
humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o
humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo,
nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse:
mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é
espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que
é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas mentiras
sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a
mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas,
e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo. A Lua é,
como diria Paul Éluard, éclatante de silence. Hoje não sei se vamos ter Lua
visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu. Uma vez eu olhei de noite
para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de
tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo. Não há
lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da
natureza. Da natureza humana também. O que seria do mundo, do cosmos, se
o homem não existisse. Se eu pudesse escrever sempre assim como estou
escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa
brainstorm. Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo.
Inventou então um maior conforto para o seu corpo. Depois os séculos se
seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira,
pois usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um
brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar. O monstro sagrado
morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha. Bem sei que terei
de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e
sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Tentação
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas
horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina
flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua,
só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não
bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a
momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer
de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra
desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser
ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava
sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era
uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor
conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em
Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina
acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset
lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro
ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele
fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria.
Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem
sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se
comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem
falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução
para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos
cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora
carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do
Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à
gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria
quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal
despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o
acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe
compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam,
debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
in "Felicidade Clandestina"
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Teu segredo
Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar.
Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então
o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do
que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o
meu.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Trabalho humano
Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida: para compreender
minha não inteligência fui obrigada a tornar-me inteligente. (Usa-se a
inteligência para entender a não inteligência. Só que depois o instrumento
continua a ser usado - e não podemos colher as coisas de mãos limpas.)
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Um caso complicado
Pois é.
Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, amante da mulher do
médico que tratava da filha, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam e a
mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o
amante podia entrar ou era toalha de cor e ele não entrava.
Mas estou me confundindo toda ou é o caso de tão enrolado que se puder
vou desenrolar. As realidades dele são inventadas. Peço desculpa porque além
de contar os fatos eu também adivinho e o que adivinho aqui escrevo. Eu
adivinho a realidade. Mas esta história não é de minha seara. É da safra de
quem pode mais que eu.
Pois a filha teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa
Jandira de 17 anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava
noiva. Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não viu
que era patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente
desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria. Todos,
inclusive a mãe sofrida da moça, imploraram ao noivo que fingisse ainda amála,
o que - diziam-lhe - não era tão penoso porque seria a curto prazo: é que a
noiva tinha vida a curto prazo.
E daí a três meses - como se cumprisse promessa de não pesar nas
débeis idéias do noivo - daí a três meses morreu, linda, de cabelos belos,
inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança
tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não, não sei
como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei, quem sabe se não
tão escura. A morte, quero dizer.
O noivo que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece
morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com
esta continuou, pouco ligando.
Bem. Essa mulher lá um dia teve ciúmes. E - tão requintada como Nelson
Rodrigues que não negligencia detalhes cruéis. Mas onde estava eu, que me
perdi? Só começando tudo de novo, e em outra linha e parágrafo para melhor
começar.
Bem. A mulher teve ciúmes e enquanto o Bastos dormia despejou água
fervendo do bico da chaleira dentro do ouvido dele que só teve tempo de dar
um urro antes de desmaiar, urro esse que podemos adivinhar, era o pior grito
que tinha. Bastos foi levado para o hospital e ficou entre vida e morte, esta em
luta feroz com aquela.
A virago ciumenta pegou um ano e pouco de cadeia. De onde saiu para
encontrar-se - adivinhem com quem? pois foi encontrar-se com o Bastos. A
essa altura um Bastos muito mirrado e, é claro, surdo para sempre, logo ele
que não perdoara defeito físico.
O que aconteceu? Pois voltaram a viver juntos, amor para sempre.
Enquanto isso a menina de 17 anos morta há muito tempo, só deixando
vestígios na mãe. E se me lembrei fora de hora da mocinha é pelo amor que
sinto.
Aí é que entra o pai dela, como quem não quer nada. Continuou sendo
amante da mulher do médico que tratara de sua filha com devoção. Filha,
quero dizer, do amante. E todos sabiam, o médico e a mãe da ex-noiva. Acho
que me perdi de novo, está confuso, mas que posso fazer?
O médico mesmo sabendo ser o pai da mocinha amante de sua mulher
cuidara muito da noivinha espaventada demais com o escuro de que falei. A
mulher do pai, portanto mãe da ex-noivinha, sabia das elegâncias adulterinas
do marido que usava relógio de ouro e anel que era jóia, alfinete de gravata de
brilhante, negociante abastado, como se diz, pois as gentes respeitam e
cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, está certo? Ele, o pai da
moça, vestido com terno verde e camisa cor-de-rosa de listrinhas. Como é que
eu sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com a adivinhação
imaginadora. Eu sei, e pronto.
Não posso esquecer de um detalhe. É o seguinte: o amante tinha na
frente um dentinho de ouro. E cheirava a alho, toda sua aura era puro alho, e a
amante nem ligava, queria era ter amante, com ou sem cheiro de comida.
Como é que eu sei? Ora, sabendo.
Não sei que fim levaram essas pessoas, não soube mais notícias.
Desagregaram-se? pois é história antiga, e talvez tenha já havido mortes entre
elas, as pessoas.
Acrescento um dado importante e que, não sei por que, explica o
nascedouro maldito da história toda: esta se passou em Niterói, com as tábuas
do cais sempre úmidas e escuras e suas barcas de vai-vém. Niterói é lugar
misterioso e tem casas velhas, enegrecidas. E lá pode acontecer água
fervendo no ouvido do amante? Não sei.
O que fazer desta história? Também não sei, dou-a de presente a quem
quiser, pois estou enjoada dela. Demais até. Às vezes me dá enjôo de gente.
Depois passa e fico de novo curiosa e atenta.
E só.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma amizade sincera
Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no
último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora.
Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não
confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não
podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro,
marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes
como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de
comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada
tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que
o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência
de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós.
Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer.
Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou
a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já
estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas
namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de
seu amores. Experimentávamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos
logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a
ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a
sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio.
Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza
revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si
mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele
morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar
em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma.
Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente
perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de
braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades
estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos
até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e
com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos
espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa
amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer
desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os
vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia
oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não
precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos
amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser
uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do
outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos
sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um
para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que
nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo
teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós
a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade
de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de
minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase
de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não
houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados:
contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não
aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse
o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam,
por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe
afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás,
nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro
àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar
também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito de passagem, com
vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra
que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a
alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também
ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto.
Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que
não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos
sinceros.
In Felicidade Clandestina.
Rio de Janeiro, Rocco, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma esperança
Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes
verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a
outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção
dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso.
Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar
diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa
parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e
verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa
para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os
quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros,
três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na
Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar
devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um
modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um
quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha. Andando
pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a
esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que
comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem
saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com
ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei
sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz.
Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a
empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da
esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa
esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer.
Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho
verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de
pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que
esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só
visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a
delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?”
Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse
nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que
não aconteceu nada.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma galinha
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove
horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou
magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o
peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante
ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no
terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá
ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.
A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de
uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o
telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo.
A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido
mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida
a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum
auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido.
E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por
um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um
ser.
Ë verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que
havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão
igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em
triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com
certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e
indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida
que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se
sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu
coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de
tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e
assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o
nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem
parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem
alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem
propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça
de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na
minha vida!
- Eu também! jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com
a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper
a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer
que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa.
Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos,
usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga - e circulava
pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho
susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha
que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às
fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem
nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no
descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a
mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se
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