Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A mulher que matou os peixes
Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi
sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até
deixo de matar uma barata ou outra.
Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é
doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer.
Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e
que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver.
Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida
para fazer alguma coisa de bom.
Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas
prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste,
me perdoarão ou não.
Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro?
E eu respondo:
- É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que eu
tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem
querer.
Estou com esperança de que, no fim do livro, vocês já me conheçam melhor e
me dêem o perdão que eu peço a propósito da morte de dois “vermelhinhos” –
em casa chamávamos os peixes de “vermelhinhos”.
Eu sempre gostei de bichos. Tive uma infância rodeada de gatos. Eu tinha uma
gata que de vez em quando paria uma ninhada de gatos. E eu não deixava se
desfazerem de nenhum dos gatinhos.
O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas infernal para as pessoas
grandes. Afinal, não agüentando mais os meus gatos, deram escondido de mim
a gata com sua última ninhada.
Eu fiquei tão infeliz que adoeci com muita febre.
Então me deram um gato de pano para eu brincar.
Eu não liguei para ele, pois estava habituada a gatos vivos.
A febre só passou muito tempo depois.
Bem, vamos mudar de assunto.
Vou contar antes umas coisas muito importantes para vocês não ficarem tristes
com meu crime. Se eu tivesse culpa, eu confessava a vocês, porque não minto
para menino ou menina. Só minto às vezes para certo tipo de gente grande
porque é o único jeito. Tem gente grande que é tão chata! Vocês não acham?
Elas nem compreendem a alma de uma criança. Criança nunca é chata.
Por enquanto só posso dizer que os peixes morreram de fome porque esqueci
de lhes dar comida. Depois eu conto, mas em segredo, só vocês e eu vamos
saber.
Tenho esperanças de que até o fim do livro vocês possam me perdoar.
Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês,
como se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e meu coração vai ouvir.
Peço que leiam esta história até o fim. Vou contar umas coisas: minha casa
tem bichos naturais. Bichos naturais são aqueles que a gente não convidou
nem comprou. Por exemplo, nunca convidei uma barata para lanchar comigo.
Minha casa tem muitos bichos naturais, menos rato, graças a Deus, porque
tenho medo e nojo deles.
Quase todas as mães têm medo de rato. Os pais não: até gostam porque se
divertem caçando e matando esse bicho que detesto. Vocês têm pena de rato?
Eu tenho porque não é um bicho bom para a gente amar e fazer carinho. Vocês
fariam carinho num rato? Vai ver vocês nem têm medo e em muitas coisas são
mais corajosos do que eu.
Tenho um amigo que, quando era menino, criou um rato branco. Fiquei com
tanto nojo que só quero apertar a mão de meu amigo quando passar o susto.
Seu rato era, na verdade, uma rata e se chamava Maria de Fátima.
Maria de Fátima morreu de um jeito horrivelzinho (eu digo horrivelzinho porque
no fundo estou bem contente): um gato comeu ela com a rapidez com que
comemos um sanduíche.
Como eu is dizendo, os bichos naturais de minha casa não foram convidados.
Apareceram assim, sem mais nem menos.
Por exemplo: tenho baratas. E são baratas muito feias e muito velhas que não
fazem bem a ninguém. Pelo contrário, elas até roem a minha roupa que está no
armário.
Vocês sabem que eu tive uma guerra danada contra as baratas e quem
ganhou nessa guerra fui eu?
Eu fiz o seguinte: paguei um dinheiro para um homem que só faz isso na vida:
matar baratas.
Esse homem faz uma coisa que se chama dedetização. Ele espalha esse
remédio pela casa toda. Esse remédio tem um cheiro muito forte que não faz
mal para a gente mas deixa as baratas muito tontas até que morrem.
Mas parece que uma barata, antes de morrer, conta baixo às outras baratas
que minha casa é perigosa para a raça delas, e assim a notícia se espalha pelo
mundo das baratas e elas não voltam para minha casa. Só seis meses depois
elas ganham coragem de voltar, mas eu chamo de novo o homem dos
remédios e elas fogem de novo.
Barata é outro bicho que me causa pena. Ninguém gosta dela, e todos querem
matá-la. Às vezes o pai da criança corre pela casa toda com um chinelo na
mão, até pegar uma e bate com o chinelo em cima até ela morrer. Tenho pena
das baratas porque ninguém tem vontade de ser bom com elas. Elas só são
amadas por outras baratas. Não tenho culpa: quem mandou elas virem?
Vieram sem serem convidadas. Eu só convido os bichos que eu gosto. E, é
claro, convido gente grande e gente pequena.
Sabem de uma coisa? Resolvi agora mesmo convidar meninos e meninas para
me visitarem em casa. Vou ficar tão feliz que darei a cada criança uma fatia de
bolo, uma bebida bem gostosa, e um beijo na testa.
Outro bicho natural da minha casa é... adivinhem!
Adivinharam? Se não adivinharam não faz mal, eu digo a vocês. O outro bicho
natural de minha casa é a lagartixa pequena. São engraçadas e não fazem mal
nenhum. Pelo contrário: elas adoram comer moscas e mosquitos, e assim
limpam minha casa toda.
Eu não mato lagartixa mas tem gente que corta elas com o chinelo. Aí é
engraçado: cada pedaço solto da lagartixa começa a se mexer sozinho. Por
exemplo, uma perna cortada e solta da lagartixa fica se mexendo no chão e
tremendo o tempo todo. É um mistério mexerem-se os pedaços antes de
morrer.
O que eu não entendo também é o paladar horrível que a lagartixa tem por
moscas e mosquitos. Mas é claro: como não sou lagartixa, não gosto de coisas
que ela gosta, nem ela gosta do que eu gosto.
Uma vez prendemos um mosquito e olhamos ele bem de perto com uma lente
forte. E vocês não imaginam como é a cara de um mosquito. É muito esquisita.
Não tenho medo de mosquito nem de mosca, mas tanto um como o outro me
incomodam muito. A lagartixa, que é minha grande amiga, me ajuda com muita
alegria porque mosquito para ela é sobremesa. Nós, gente, gostamos de
sobremesa com coco, por exemplo, mas a lagartixa até parece ter nojo desse
doce.
A lagartixa não fala, não canta, não dança, não gosta da gente porque tem
medo das pessoas. A lagartixa seria um perigo para nós se ela fosse igual em
tamanho ao jacaré.
Agora vou falar sobre bichos convidados, igual ao meu convite para vocês. Às
vezes não basta convidar: Tem-se que comprar.
Por exemplo, convidei dois coelhos para morar com a gente e paguei um
dinheiro ao dono deles. Coelho tem uma história muito secreta, quero dizer,
com muitos segredos.
Eu até já contei a história de coelho num livro para gente pequena e para gente
grande. Meu livro sobre coelhos se chama assim: “O mistério do coelho
pensante”. Gosto muito de escrever história para crianças e gente grande. Fico
muito contente quando os grandes e os pequenos gostam do que escrevi.
Se vocês gostam de escrever ou desenhar ou dançar ou cantar, façam porque
é ótimo: enquanto a gente brinca assim, não se sente mais sozinha, e fica de
coração quente.
Voltando aos coelhos, tem gente que come coelho. Eu não tenho coragem
porque é como se eu comesse um amigo. Os dois coelhos que tivemos em
casa eram meus amigos.
Também tivemos aqui em casa dois patos comprados que andavam o dia
inteiro atrás da gente com aquele modo engraçado de andar dos patos.
Outro bicho que pensa que a gente é mãe deles é qualquer pinto. Nesse ponto
o pinto é igual a gente: fica com saudade do calor da galinha-mãe. O que a
gente pode fazer de bom para um pinto que fica piando e chorando de saudade
é segura-lo na mão e esquentar o corpo dele. Quando a gente pega neles a
gente sente o seu minúsculo coração batendo dentro do pequeno corpo fofo e
morno deles. Embaixo das penas macias sentem-se os ossos bem finos das
costelas deles. Pinto é sempre magrinho. E, longe da galinha, morre à toa. Já
comprei muitos pintos e a maioria morreu. Só continuavam a viver os pintos
que tinham alma mais forte.
Quanto a cachorros, eu já tive dois.
O primeiro foi assim: eu estava morando numa terra que se chama Itália. Um
dia, andando pelas ruas da cidade, vi um cachorro vira-lata.
Os vira-latas são tão inteligente que aquele que eu vi sentiu logo que eu era
boa para os animais e ficou no mesmo minuto alvoroçado abanando o rabo.
Quanto a mim, foi só olhar que logo me apaixonei pela cara dele. Apesar de ser
italiano, tinha cara de brasileiro e cara de quem se chama Dilermando. Paguei
um dinheiro para a dona dele e levei Dilermando para casa. Logo dei comida a
ele. Ele parecia tão feliz por eu ser dona dele que passou o dia inteiro olhando
para mim e abanando o rabo. Vai ver que a outra dona dele batia nele, de
modo que Dilermando estava feliz em mudar de dona.
Dilermando era quase tão inteligente como uma criança de dois anos. Vivia
atrás de mim para não se sentir sozinho. E comia tanto de tudo que logo
engordou.
Passava o dia cheirando as coisas: cachorro cheira as coisas para
compreendê-las; eles não raciocinam muito, são guiados pelo amor do coração
dos outros e deles mesmos.
Dilermando gostava tanto de mim que quase endoidecia quando sentia pelo
faro o meu cheiro de mulher-mãe e o cheiro do perfume que uso sempre. Esse
perfume se chama em francês “Vert et Blanc”, isto é, “Verde e Branco”, e foi
inventado por um homem que se chama Carven. Como vocês vêem, existe de
tudo neste mundo: mulheres que batem em cachorros, outras que nunca
batem, homem que ganha dinheiro para matar baratas, homem que faz umas
misturas e inventa perfume. Isto eu estou dizendo para que vocês se lembrem
quando crescerem que há muito o que fazer na vida.
Bem, mas e o cheiro de Dilermando. Ele detestava tomar banho, pensava que
era a gente era ruim quando obrigava ele a esse sacrifício. Como dava muito
trabalho dar banho todos os dias e como ele fugia da banheira todo
ensaboado, terminei dando banho só duas vezes por semana. O resultado, é
claro, é que ele tinha um cheiro muito forte de cachorro e eu logo sentia com o
meu faro, porque gente também tem faro. Vocês têm faro? Aposto que sim,
porque além de sermos gente, somos também animais. O homem é o animal
mais importante do mundo, porque, além de sentir, o homem pensa resolve e
fala. Os bichos falam sem palavras.
Sabem como tive que me separar de Dilermando? É que eu tinha de ir embora
da Itália e ir para um país chamado Suíça. E nesse país os hotéis não deixam
entrar cachorros. Então escolhi uma moça muito boa para cuidar dele. Na hora
de me despedir dele, fiquei tão triste que chorei. E Dilermando também chorou.
Muitos anos depois eu estava morando em outro país que se chama Estados
Unidos da América. E comprei um cachorro americano com o nome de Jack.
Não lembro de que raça ele era porque não faço diferenças, eu gosto de todas
as raças humanas e de animais.
Jack era daqueles cachorrões que latem o tempo todo e vigiam a casa para
não deixar entrar ladrão.
Jack só fazia algumas coisas na vida disciplinada dele: latia, comia, namorava
muito, vigiava a casa, dormia, brincava com a gente.
Ele tinha uma vida muito animada porque ele gostava de tudo o que fazia. Igual
a mim, porque faço várias coisas na vida e gosto do que faço. Muitas coisas eu
faço sem gostar, só por dever. Jack era menos inteligente que Dilermando,
mas era um cachorro muito corajoso. Ele não tinha medo de nada.
Sabem o que aconteceu? Foi o seguinte: de noite Jack ficava no nosso jardim
defronte de casa e ele era tão metido a importante que passou a vigiar a rua
inteira, sem ninguém pedir. Quando uma pessoa passava lá longe na rua, ele
latia tanto que acordava toda a vizinhança.
Até que uma madrugada um vizinho veio de pijama para nossa casa e disse
que estava cansado de não dormir e que, se Jack ficasse conosco, ele ia dar
um tiro nele.
O vizinho estava muito zangado, e eu vi que ele mataria mesmo. Para salvar a
vida de Jack, demos ele a uma família muito boa que morava num sítio e onde
Jack podia latir à vontade.
Só tive na vida esses dois cachorros felizes. Agora vou contar uma história de
macacos um pouco alegre e um pouco triste.
Imaginem vocês que tinha saído para fazer compras e quando voltei e entrei
em casa senti que havia alguma coisa esquisita acontecendo. Toas as pessoas
estavam no terraço dos fundos e fui olhar o que era que tinha ali.
Vocês não acreditam que eu não esperava jamais o que encontrei: um macaco.
Na verdade era um mico tão grande e forte como se fosse um filhote de gorila.
Ele estava muito agitado e nervoso porque ainda não conhecia bem a casa. De
pura agitação subia de repente pelas roupas estendidas na corda, sujando
todas as roupas lavadas. De lá de cima dava gritos que nem marinheiro dando
ordens num navio. E jogava cascas de banana mesmo que caíssem em cima
de nós.
Bom, esse mico enorme passou a morar conosco. Sempre que eu ia para a
área de serviço ele ficava alegre que pulava de um canto para outro, sujando
tudo.
Vocês sabem muito bem que macaco é bicho que mais se parece com as
pessoas. Esse macaco até parecia ter vida humana. Parecia com um homem
maluco. Como ele fazia uma bagunça horrível na casa, resolvi dá-lo às
crianças do morro que adoram micos. Em casa todo mundo ficou triste e
zangado comigo.
Passou-se mais um ano. Uma tarde eu estava andando pelas ruas para
comprar presentes de Natal. As ruas estavam muito cheias de pessoas
comprando presentes. No meio daquela gente toda, vi um agrupamento, fui
olhar: era um homem vendendo vários micos, todos vestidos de gente e muito
engraçados. Pensei que todas de casa iam ficar adorando o presente de Natal,
se fosse um miquinho. Escolhi uma miquinha suave e linda, que era muito
pequena. Estava vestida com saia vermelha, e usava brincos e colares
baianos. Era muito delicada conosco, e dormia o tempo todo.
Foi batizada com o nome de Lisete. Lisete às vezes parecia sorrir pedindo
desculpas por dormir tanto. Comer, quase não comia, e ficava parada num
cantinho só dela.
No quinto dia comecei a desconfiar que Lisete não estava bem de saúde. Pois
não era normal o jeito quieto e calado dela.
No sexto dia quase dei um grito quando adivinhei: “Lisete está morrendo!
Vamos levá-la a um veterinário!” Veterinário é o médico que só cuida de
bichos.
Ficamos muito assustados porque já amávamos Lisete e sua carinha de
mulher. Ah, meu Deus, como nós gostávamos de Lisete! Enrolei Lisete num
guardanapo e fomos de táxi correndo para um hospital de bichos. Lá deram-lhe
imediatamente uma injeção para ela não morrer logo. A injeção foi tão boa que
até parecia que ela estava curada para sempre, porque de repente ficou tão
alegre que pulava de um canto para outro, dava guinchos de felicidade, fazia
caretinhas de macaco mesmo, estava doida para agradar a gente.
Descobrimos, então, que ela nos amava muito e que não demonstrara antes
porque estava tão doente que não tinha força.
Mas, quando passou o efeito da injeção, ela, de repente, parou de novo e ficou
toda quieta e triste na minha mão. O médico então disse uma coisa horrível:
que Lisete ia morrer.
Aí compreendemos que Lisete já estava muito doente quando eu a comprei. O
médico disse que não se compram macacos na rua porque às vezes estão
muito doentes. Nós perguntamos muito nervosos:
- E agora? Que é que o senhor vai fazer?
Ele respondeu assim:
- Vou tentar salvar a vida de Lisete, mas ela tem que passar a noite no hospital.
Voltamos para casa com o guardanapo vazio e o coração vazio também. Antes
de dormir, eu pedi a Deus para salvar Lisete.
No dia seguinte o veterinário telefonou avisando que Lisete tinha morrido
durante a noite. Compreendi então que Deus queria leva-la. Fiquei com os
olhos cheios de lágrimas e não tinha coragem de dar esta notícia ao pessoal de
casa. Afinal avisei, e todos ficaram muito, muito tristes.
De pura saudade, um de meus filhos perguntou:
- “Você acha que ela morreu de brincos e colar?”
Eu disse que tinha certeza que sim, e que, mesmo morta, ela continuaria linda.
Também de pura saudade, o outro filho olhou para mim e disse com muito
carinho:
- “Você sabe, mamãe, que você se parece muito com Lisete?”
Se vocês pensam que eu me ofendi porque pareci com Lisete, estão
enganados. Primeiro, porque a gente se parece mesmo com um macaquinho;
segundo, porque Lisete era cheia de graça e muito bonita.
- Obrigada meu filho – foi isso que eu disse a ele e dei-lhe um beijo no rosto.
Um dia desses vou comprar um miquinho com saúde. Mas esquecer Lisete?
Nunca.
Bem, agora descansem um pouco porque vou contar uma história tão horrível
que até parece filme de mocinho e bandido. É uma história de amor e ódio
misturados num só coração.
Já descansaram? Bem, então prestem bastante atenção porque essa história
de cachorro é terrível mesmo. Não pensem que estou inventando as minhas
histórias. Dou minha palavra de honra que minhas histórias não são de
mentira: aconteceram mesmo.
Bem, preparem-se que eu vou começar.
Um amigo meu, chamado Roberto, tinha um cachorro que se chamava: Bruno
Barberini de Monteverdi. É um nome comprido para um cão, mas era assim
que ele se chamava. Quando a gente queria falar com ele só chamava Bruno,
porque senão seu nome ficava enorme.
Bruno tinha um amigo, cachorro também, que vigiava a casa de um vizinho.
Esse amigo-cachorro de Bruno chamava-se Max.
Eles eram tão amigos que um chamava o outro, convidando para almoçar e
botavam os dois focinhos no mesmo prato de comida. É claro que Bruno nem
Max falavam, só latiam. E os convites para um almoçar na casa do outro eram
transmitidos assim: latindo um pouquinho, abanando o rabo, ficando parado um
diante do outro, e de repente andando. Então o cachorro entendia que era para
seguir o outro e almoçarem juntos.
Esqueci de dizer que Bruno Barberini Monteverdi tinha paixão pelo dono,
Roberto. E era muito fiel. Bruno não deixava ninguém se aproximar demais do
dono pensando que iam ataca-lo. Todas as noites esperava acordado que o
dono voltasse e só ia dormir quando esse chegava. Isso eu estou contando
para vocês entenderem a tragédia que aconteceu.
Um dia, Max estava almoçando na casa de Bruno, quando o dono entrou na
cozinha. Não se sabe por que Max resolveu fazer festinhas no dono de Bruno.
E para fazer a festinha aproximou-se do dono e se encostou na sua perna.
Bruno ficou espantado por um segundo: pensou que Max ia atacar Roberto e
correu em defesa do dono.
Para defender o dono, atirou-se em cima de Max, que não tinha culpa
nenhuma. Mas Max, vendo-se ferozmente atacado reagiu. E o resultado foi
uma luta sangrenta.
Max tinha mais força que Bruno. Bruno estava sendo estraçalhado. Finalmente,
Roberto conseguiu separar os dois.
Bruno estava gravemente ferido e já quase morrendo. Seu coração quase não
batia mais. Roberto levou Bruno depressa para o hospital de bicho. Lá deram
uma injeção para reanimar o seu coração, que estava quase parando.
Cuidaram dos ferimentos do corpo e da cabeça, e Bruno ficou muitos dias no
hospital. Até que ficou bom e pôde voltar para casa.
Agora pergunto a vocês: que é que Bruno fez?
Bruno era tão corajoso que, curado dos ferimentos, foi atacar Max. Este deulhe
então a maior surra que se posso imaginar. E dessa vez os ferimentos
foram tão graves que até as orelhas de Bruno ficaram inteiramente rasgadas.
Roberto levou-o de novo para o hospital, onde dessa vez, Bruno ficou dois
meses. Quando ficou curado, voltou para casa.
E agora me respondam: que é que vocês acham que Bruno fez?
Acertaram. Bruno foi vingar-se e atacar Max.
Mas dessa vez ele estava com tanta, mas tanta raiva que sua força aumentou
e ficou diabólica.
E ele, enfim, matou Max.
É, mas no mundo dos cachorros é diferente. Não há polícia para eles irem se
queixar. Então os cachorros mesmos resolvem entre si as brigas, fazem o
papel de juiz e de polícia, e muitas vezes agem como bandidos armados. Os
cachorros não se perdoam.
O que aconteceu foi que os cachorros da vizinhança ficaram contra Bruno e
não perdoaram a morte horrível de Max.
Então, para vingarem-se, começaram a cercar Bruno. Bruno já tinha até medo
de sair para a rua. Quando saía, ficava muito desconfiado, olhando de um lado
para outro.
Afinal, vendo que não acontecia nada de ruim, começou tranqüilamente a sair
de novo. E foi esse o grande erro de Bruno.
Uma tarde ele estava passando todo sozinho e até lamentando a morte de Max
que era o seu único amigo. Estava com muita saudade. Amigo bom não se
encontra todos os dias. Os cachorros têm uma alma bem grande, eles até
entendem a gente. O mundo dos cães é cheio de amor para dar, e eles dão de
graça. Bruno estava triste demais sentindo falta daquele que matara por amor a
Roberto.
Nessa tarde tão triste, quando não havia prazer em ao menos cheirar as
coisas, apareceu de repente na esquina um cachorro.
E de repente na outra esquina mais um cachorro. E depois, saíram das casas
da vizinhança três cachorros.
Bruno percebeu logo que estava cercado por vários cachorros enormes e
fortes. Bruno sabia que a lei dos cachorros é a vingança. Ele quis fugir mas não
podia quebrar o cerco. Os cachorros formavam uma espécie de círculo em
torno de Bruno.
E o círculo ia ficando cada vez mais apertado. Até que os cachorros
conseguiram encurralar Bruno junto de uma árvore.
Os cachorros então de repente atacaram de uma só vez Bruno, fazendo eles
mesmos justiça, porque, como eu disse, no mundo dos cães eles próprios se
encarregam de ser juiz e polícia. Eram cinco cachorrões contra Bruno. Bruno
ainda tentou se defender mas não tinha força contra eles.
E aconteceu o que era de se esperar: o pior. Os cinco cachorros castigaram
Bruno até ele morrer.
E assim é que Bruno Barberini de Monteverdi morreu para todo o sempre.
Vocês ficaram com saudade do Bruno? Eu também. A história da vida e da
morte de Bruno Barberini de Monteverdi é uma história de grande amor:
Bruno amava tanto Roberto que não permitia nenhum outro cachorro fazer
carinho no dono ou atacá-lo.
Também era grande o amor fraterno que ligava Bruno e Max. Mas o primeiro
amor era para Roberto.
Vocês ficaram tristes com a história? Vou fazer um pedido para vocês: todas as
vezes que vocês sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa
para conversar. Escolham uma pessoa grande que seja muito boa para
crianças e que entenda que às vezes um menino ou uma menina estão
sofrendo. Às vezes de pura saudade, como os periquitos australianos.
Conheço uma moça que toca piano muito bem nos teatros. Essa moça ganhou
de presente no dia do seu aniversário um periquito australiano. Só ganhou a
fêmea. O pior é que as pessoas que dão um periquito australiano têm que
comprar dois: um macho e uma fêmea que, por causa da raça deles, são tão
amorosos que passam o dia se beijando e não podem ser separados. A
periquita até adoeceu de tanta saudade do macho dela.
Bom, depois de contar uma história um pouco triste sobre a saudade da
periquita, quero ficar alegre e alegrar vocês com outra história.
Falarei sobre uma coisa muito boa: sobre uma ilha.
Vocês gostariam de ter uma ilha só para cada um de vocês e para os seus
amigos? Eu gostaria muito e não tenho.
Mas uma amiga minha comprou uma ilha só para ela e os amigos
descansarem. Vocês sabem bem como é uma ilha? E um pedaço de terra
cercado de água por todos os lados.
Eu queria que vocês fossem fazer uma visita comigo à ilha de minha amiga.
Vocês poderiam tomar banho de mar, caçar bichos, e de noite iam dormir numa
rede. Vocês não iam ter medo porque eu ia dormir no mesmo quarto,
protegendo cada menino e cada menina.
No mar dessa ilha tem de tudo: todas as espécies de peixes. Até cavalomarinho
tem. Ver um cavalo-marinho nadar é lindo: parece até com homens e
mulheres dançando devagar.
Essa ilha é um pouco encantada.
Por quê? Pelo ar sempre novo, pelo capim chamado sapê que parece cantar
ao vento, pela cidade das borboletas. Minha amiga e um grupo de amigos dela
estavam explorando a ilha, e no meio de um bambual encontraram a cidade
das borboletas. Nessa clareira elas vivem, voam alto, voam baixo, voam ao
redor de nós. Pequenas, grandes, azuis, amarelas e de todas as cores. Parecia
um bailado de borboletas naquele silêncio que só uma ilha tem.
O silêncio da ilha é um silêncio diferente: é atravessado pelos sons
característicos dos habitantes animais e vegetai. Planta, se a gente pegar com
jeito, as folhas delas parecem cantar. E falam com a gente. O quê? Depende
de a gente estar triste ou alegre, com fome de beleza e de conversa.
Minha amiga comprou a ilha para lá morarem durante um tempo crianças um
pouco tristes que ainda não tinham conversado com plantas e animais. Um
cavalo-marinho recebeu minha amiga no banho de mar.
No fundo do mar lá é azul e de todas as outras cores também por causa dos
ouriços coloridos e das estrelas-do-mar e pelas algas que se movem dando
esse colorido ondulante.
Vocês pensam que estou inventando?
Mas, se eu jurar por Deus que tudo o que contei neste livro é verdade, vocês
acreditam? Pois juro por Deus que tudo o que contei é a pura verdade e
aconteceu mesmo. Eu tenho respeito por meninos e meninas e por isso não
engano nenhum deles.
Bem, obrigada por terem acreditado em mim. Não gosto de passar por
mentirosa.
Além dos cardumes de peixes pequenos e grandes, no mar da ilha também
tem cardumes de botos ou delfins: parecem com uma baleia pequena.
Os bichos da terra são pássaros de todas as cores e tamanhos. Também tem
na ilha muita cobra e muito lagarto. A casa da ilha fica de portas e janelas
fechadas contra mosquitos, lagartos e cobras. Tem também manadas de antas.
A ilha é tão grande que a dona dela ainda não conheceu tudo. E tem uma parte
selvagem que nunca foi explorada.
A parte encantada são os brinquedos no mar de noite: desde a pesca com luz
de lanterna até o mergulho todo iluminado pela fosforescência das plantas do
mar. Peçam à gente grande para explicar o que é fosforescência.
As frutas são jaca, caju, cajá, graviola, bananas. E dos coqueiros altíssimos
caem cocos à beca, até em cima da gente se não se toma cuidado. Tem
também goiabas das brancas e vermelhas, e pitangas escarlates.
A água para beber foi canalizada com os bambus enormes da ilha.
É uma ilha tão encantada que eu teria medo de ficar sozinha de noite na minha
rede. Nessa ilha tem todas as espécies de árvores, plantas, frutas e flores.
Morar numa ilha para sempre é triste porque a gente não quer se separar da
família e dos amigos. Mas não precisamos morar lá. Basta passar sábado e
domingo.
Bem, vamos deixar a ilha em paz, e voltar para os bichos. Eu tenho uma amiga
que tem um cachorro que late tanto e tão alto que já me deu vontade de latir de
volta.
Eu fico muito ofendida quando um bicho tem medo de mim, pois sou corajosa e
protejo os animais. Quem de vocês tiver medo, eu cuido e consolo. Porque sei
o que é o medo que as crianças têm porque já fui criança. Até hoje ainda tenho
medo de certas coisas.
Outra amiga tinha uma cadela chamada Bolinha. Ela era muito normal, mais
normal que muita gente humana e que muitos cachorros. Era uma mãe
perfeita. Cuidava sozinha dos filhotes e lambia eles em lugar de dar banho.
Quando minha amiga chegava perto, empurrava os filhotes com o focinho para
apresentá-los. Bolinha ensinava os filhos a correr e a brincar.
Era muito sensível e um pouco nervosa. Percebia longe a chegada de pessoas.
Quando as pessoas estavam zangadas, ou ela fazia alguma coisa errada,
encostava-se contra a parede e ficava de lá olhando muito sem jeito.
De cavalo não tenho nenhuma história para contar, e é uma pena, porque
cavalo é um animal de grande beleza.
Bem, agora chegou a hora de falar sobre o meu crime: matei dois peixinhos.
Juro que não foi de propósito. Juro que não foi muito culpa minha. Se fosse, eu
dizia.
Meu filho foi viajar por um mês e mandou-me tomar conta de dois peixinhos
vermelhos dentro do aquário.
Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que eu não
seja de confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo
histórias para gente grande.
E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e
quando vão ver já se queimou toda a comida – eu estava também ocupada
escrevendo história. E simplesmente fiz uma coisa parecida co deixar a comida
queimar no fogo: esqueci três dias de dar comida aos peixes! Logo aqueles
que eram tão comilões, coitados.
Além de dar comida, eu devia sempre trocar a água do aquário, para eles
nadarem em água limpa.
E a comida não era qualquer uma: era comprada em lojas especiais. A comida
parecia um pozinho horrível, mas devia ser gostoso para peixe porque eles
comiam tudo.
Devem ter passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, o
cachorro late, o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas peixe é tão
mudo como uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar. E, quando
fui ver, estavam parados, magros, vermelhinhos – e infelizmente já mortos de
fome.
Vocês ficaram muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me dêem
perdão. Eu também fiquei muito zangada com a minha distração. Mas era tarde
demais para eu lamentar.
Eu peço muito que vocês me desculpem. Dagora em diante nunca mais ficarei
distraída.
Vocês me perdoam?
In, A mulher que matou os peixes
Rocco, Rio de Janeiro, 1999
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A perfeição
O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fracção de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exactidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exactidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A proteção pungente
Ela não podia olhar para seu pai quando ele tinha uma alegria. Porque
ele, o forte e amargo, ficava nessas horas todo inocente. E tão desarmado. Oh,
Deus, ele esquecia que era mortal. E obrigava ela, uma criança, a arcar com o
peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e
mais animais também morrem. Nesses instantes em que ele esquecia que ia
morrer, ele a tornava a Pietà, a mãe do homem.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A quinta história
Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O
Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três
histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma
única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas.
Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que
misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as
atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa
assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E
então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado
de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os
canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas
se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar
ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me
tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém
acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os
males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da
noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado
e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma
coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a
gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como
para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais
parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento,
eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro
dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de
atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha.No chão da área lá estavam
elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia.
No morro um galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo
que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até
o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha.
Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na
escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés
sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas.As baratas que
haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras
no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um
pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em
Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o
gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com
movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as
alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se
tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada.
Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido
a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se
cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando
o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam.Enquanto aquela ali, a de
antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se
mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita
do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para
dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo.
Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da
história anterior canta o galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe:
queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de
gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite
renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar
todas as noites o açúcar letal? como quem já não dorme sem a avidez de um
rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício
de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de
mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao
aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno.
Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem
adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma.
Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta
casa foi dedetizada”.
A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na
Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas.
In “A Legião Estrangeira”
São Paulo, Ática, 1977, p. 81-84
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A repartição dos pães
Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas
cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não
queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu,
eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e
fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não
queria a ninguém. Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em
acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu
o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à
saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu
quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do
cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e
avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria
maior.
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa
quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados.
Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer
com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava
como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem - menos ficar naquela
estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo
para outros, outros cavalos. Passamos afinal à sala para um almoço que não
tinha a benção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa.
Não podia ser para nós...
Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva
realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela
mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do
primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca
amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras
amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde
líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas,
maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros
sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos
olhos - tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como
junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que
mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava
esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar,
para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua
de quem primeiro chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher
que lavava pés de estranhos pusera - mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos
amar - um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada
vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez
espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite,
como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho,
quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo como é,
não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo.
Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os
ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.
Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom.
Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco
anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como
fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto: tudo aquilo queria tanto ser comido quanto nós
queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o
que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de
antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está
perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava
o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tomava conta do leite.
Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas
acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne
trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de
ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fezse
trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos
gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e
colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não
engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi
tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e
reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem
ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi
sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre
posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah
não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe.
Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor.
Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós
comemos. Pão é amor entre estranhos.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
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