Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma história de tanto amor
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes
conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo
tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém,
e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais
longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua
arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava
Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela
cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que
considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva
não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem
coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia
eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre
dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era
quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o
dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro
debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um
desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados
assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia
continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava
ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das
galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina
ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem
homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm
misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita)
inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia
perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e
Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia
inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um
destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A
menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso
quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na
gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a
coisa toda tomava:
— Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada
demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar
uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um
parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em
vida fora Petronilha. Sua tia informou:
— Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha
não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a
amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com
Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não
gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de
boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de
comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a
gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não
temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida
mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo
num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem
embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das
fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a
morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda
enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte
Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas
intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não
romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de
Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o
destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência
do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha
é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer
bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu
sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim
Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham
feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que
lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e
bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia
Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia
os homens.
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma imagem de prazer
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a
tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma floresta, e
na
floresta vejo a clareira verde, meio escura, rodeada de alturas, e no meio desse
bom escuro estão muitas borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada
no chão tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam
realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo com
manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele é amarelo,
pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo. O bom dessa
imagem é a penumbra, que não exige mais do que a capacidade de meus
olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou eu, com borboleta, com leão.
Minha clareira tem uns minérios, que são as cores. Só existe uma ameaça: é
saber com apreensão que fora dali estou perdida, porque nem sequer será
floresta (a floresta eu conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e
este eu conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará ir
para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e sem cor de
chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para mim. Ponho
apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda gostando de minha
intimidade com o leão e as borboletas; nenhum de nós pensa, a gente só
gosta. Também eu não sou em preto e branco; sem que eu me veja, sei que
para eles eu sou colorida, embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles
(nós não somos inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas
mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A
penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas repito
por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de novo. De modo
que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E estamos muito bem. Para
falar a verdade, nunca estive tão bem. Por quê? Não quero saber por quê.
Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar.
Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão
amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim
cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.
In “Para não esquecer.
Editora Rocco. Rio de Janeiro. 1999. p. 36- 37.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma ira
“Esta” - se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra -
“esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão.
Não sei que nome dar ao que me toma, ou ao que estou com voracidade
tomando, senão de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir
clemência a mim mesmo? É a vontade de destruir, como se para este
momento de destruir eu tivesse nascido. Momento que virá ou não, a minha
escolha depende de poder ou não me ouvir. Deus ouve, mas eu me ouvirei? A
força de destruição ainda se contém um instante em mim. Não posso destruir
ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira; então eu quero
destruir a mim, que sou a fonte dessa paixão. Não quero pedir a Deus que me
aplaque, amo tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com o meu pedido,
meu pedido queima, minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia
destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim. No
entanto só a Ele eu poderia pedir que pusesse a mão sobre mim e arriscasse
queimar a Dele. Não me atendas porque meu pedido é tão violento que me
atemoriza. Mas a quem pedir, neste rápido instante de trégua, se já afastei os
homens? Afastei os homens, fui fechando as doçuras de minha natureza a
cada golpe que recebi, e as doçuras negadas foram se enegrecendo como
nuvens simples que vão se fechando em escuridão, e eu abaixo a cabeça à
tempestade. Como seria a ira divina, se esta minha me deixa cego de força
total? Se esta cólera só destruísse a mim. Mas tenho que proteger os outros -
os outros têm sido a fonte de minha esperança. Que faço para não usar esta
onipotência que me toma? o que me direi eu? Senão a verdade, senão a
verdade. Só outra coisa eu conheci tão total e cega e forte como esta minha
vontade de me espojar na violência: a doçura da compaixão. Só isto ainda
posso tentar pôr no outro prato da balança - pois no primeiro prato está o
sangue e o ódio ao sangue e o riso ao sangue que dói. Que estou querendo?
Quero que a cada uma de minhas dores corresponda hoje e agora um ato de
cólera.
“Mas eu sei o que foram as minhas dores. A cólera, é fácil expô-la. Mas a
dor, esta me envergonhava. Porque minha dor vem de que não saí feliz de
meus outros pecados mortais. Minha violência - que é em carne viva e só quer
como pasto a carne viva - esta violência vem de que outras violências vitais
minhas foram esmagadas. Minhas outras violências pecadoras que se
pareciam tanto com um direito meu... No começo elas se pareciam tanto com
minhas maiores suavidades. Eu tinha nascido simplesmente e também
simplesmente quis ir tomando para mim o que queria. E a cada vez que não
podia, a cada vez que era proibido, a cada vez que me negavam, eu sorria e
pensava que era um manso sorriso de resignação. Mas era a dor que se
mascarava em bondade. Eu sabia que era dor errada diante de Deus, e, pior,
diante de mim, quem quer que eu seja. Cada vez que meus pecados não
venciam, eu sofria, mas sem me sentir com direito de sofrer, e tinha que
esconder não apenas a dor, mas sobretudo o que causara a dor. O que estava
sendo pisado em mim? na minha verdade de outrora, o que estava sendo
pisado em mim? Os pecados mortais.
“Os pecados mortais clamavam em mim por mais vida, e clamavam com
vergonha, os pecados mortais em mim pediam o direito de viver. Minha gula
pelo mundo: eu quis comer o mundo, e a fome com que nasci pelo leite, essa
fome quis se estender pelo mundo, e o mundo não se queria comível. Ele se
queria comível, sim, mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a
humildade com que ele se dava. Mas a fome violenta é exigente e orgulhosa, e
quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos
dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples, e eu fui comê-lo com o
meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou
em pedra e ouro aos meus dentes, eu fingi por orgulho que não doía, eu
pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da
própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e
era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo
mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era
a grande alegria de viver - e eu pensava que esta, sim, é livre. Mas como foi
que transformei, sem nem sentir, a alegria de viver na grande luxúria de estar
vivo? No entanto, no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor
pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem
ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não
era uma doçura de amor pelo mundo, era uma avidez de luxúria pelo mundo. E
o mundo de novo se retraiu, e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo
me espantava na minha insônia, sem eu entender que a noite do mundo e a
noite do viver são tão doces que até se dorme, que até se dorme, meu Deus. E
a água, na minha luxúria de viver, a água se derramava pelos dedos antes de
chegar à boca. E eu amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser
salvo pela alegria. Eu não sabia que só o meio-termo não é pecado mortal, eu
tinha vergonha do meio-termo. Os pecados são mortais não porque Deus mata,
mas porque eu morro deles. Eu é que não pude arcar com os pecados mortais.
O que não consegui com eles, é isso que hoje me violenta e a que respondo
com violência. Os meus pobres meios canhestros não me conseguiram nem
terra nem céu, e a fúria me toma. Ah, mas se por um instante eu entender que
a fúria é contra os meus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se
transformará nas minhas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor.
Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor
irrealizado, meu ódio é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo - menos a
vida. E é isso o que não perdôo em mim, e como não suporto não me perdoar,
então não perdôo aos outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida,
quero matá-la. A minha cólera - que é ela senão reivindicação? - a minha
cólera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cólera
é o reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem
orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tanto temi
jurar-me para sempre com essa primeira palavra que mal ouso pronunciar
(amor), que fugi para a violência e para os olhos ensangüentados da paixão.
Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do
“outro” que sempre Te representou. Que rei sou eu, que não se curva? Tenho
que escolher entre a quebra do orgulho e o amor correnteza da ignorância e da
doçura. A minha verdade antiga ainda me serve? Deus proibiu os sete pecados
não por exigência de perfeição, mas apenas por piedade de nós, de mim que,
como os outros, também tento não ser Dele e tento não ser dos outros, e eu sei
que os outros são Ele. Neste instante tenho que escolher entre amar ou ter
ódio. Sei que amar é mais lento, e a urgência me consome. Cobre minha fúria
com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar,
minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou
uma erva que se sente onipotente e se assusta. Tira de mim a falsa
onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique
ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que
aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e
portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só
porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem
de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua
grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma
forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da
amante, do filho. Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento
de não amar.”
in “Para não esquecer” - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma revolta
Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e
nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como
uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso
de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma tarde plena
O sagüim é tão pequeno como um rato, e da mesma cor.
A mulher, depois de se sentar no ônibus e de lançar uma tranqüila vista
de proprietária pelos bancos, engoliu um grito: ao seu lado, na mão de um
homem gordo, estava aquilo que parecia um rato inquieto e que na verdade era
um vivíssimo sagüim. Os primeiros momentos da mulher versus sagüim foram
gastos em procurar sentir que não se tratava de um rato disfarçado.
Quando isso foi conseguido, começaram momentos deliciosos e intensos:
a observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa.
Mas era privilégio da mulher estar ao lado do personagem principal. De
onde estava podia, por exemplo, reparar na minimeza que é uma língua de
saguïm: um risco de lápis vermelho.
E havia os dentes também: quase que se poderiam contar cerca de
milhares de dentes dentro do risco da boca, e cada lasca menor que a outra, e
mais branca. O sagüim não fechou a boca um instante.
Os olhos eram redondos, hipertireóidicos, combinando com um ligeiro
prognatismo - e essa mistura, se lhe dava um ar estranhamente impudico,
formava uma cara meio oferecida de menino de rua, desses que estão
permanentemente resfriados e que ao mesmo tempo chupam bala e fungam o
nariz.
Quando o sagüim deu um pulo no colo da senhora, esta conteve um
frisson, e o prazer encabulado de quem foi eleita.
Mas os passageiros olhavam-na com simpatia, aprovando o
acontecimento, e, um pouco ruborizada, ela aceitou ser a tímida favorita. Não o
acariciou porque não sabia se esse era o gesto a ser feito.
E nem o bicho sofria à míngua de carinho. Na verdade o seu dono, o
homem gordo, tinha por ele um amor sólido e severo, de pai para filho, de dono
para mulher. Era um homem que, sem um sorriso, tinha o chamado coração de
ouro. A expressão de seu rosto era até trágica, como se ele tivesse missão.
Missão de amar? O sagüim era o seu cachorro na vida.
O ônibus, na brisa, como embandeirado, avançava. O sagüim começou a
comer biscoito. O sagüim coçou rapidamente a redonda orelha com a perna
fina de trás. O sagüim guinchou. Pendurou-se na janela, e espiou o mais
depressa que podia - despertando nos ônibus opostos caras que se
espantavam e que não tinham tempo de averiguar se tinham mesmo visto o
que tinham visto.
Enquanto isso, perto da senhora, uma outra senhora contou a outra
senhora que tinha um gato. Quem tinha posses de amor, contou.
Foi nesse ambiente de família feliz que um caminhão quis passar à frente
do ônibus, houve quase encontro fatal, os gritos. Todos saltaram depressa. A
senhora, atrasada, com hora marcada, tomou um táxi.
Só no táxi lembrou-se de novo do sagüim.
E lamentou com um sorriso sem graça que - sendo os dias que correm
tão cheios de notícias nos jornais e com tão poucas para ela - tivessem os
acontecimentos se distribuído tão mal a ponto de um sagüim e um quase
desastre sucederem na mesma hora.
“Aposto” - pensou - “que nada mais me acontecerá durante muito tempo,
aposto que agora vou entrar no tempo das vacas magras”. Que era em geral
seu tempo.
Mas nesse mesmo dia aconteceram outras coisas. Todas até que dentro
da categoria de bens declaráveis. Só que não eram comunicáveis. Essa mulher
era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem
consigo própria.
Mas assim é. E jamais se soube de um sagüim que tenha deixado de
nascer, viver e morrer - só por não se entender ou não ser entendido.
De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma vez irei...
Uma vez irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma desta vez. O espírito,
eu o terei entregue à família e aos amigos, com recomendações. Não será
difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não
será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei,
qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através
de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão.
De tigre, eu preferiria...
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Vida
Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que
mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la.
Sonhe com aquilo que você quiser. Vá para onde você queira ir.
Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só
temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la
forte.
Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o
melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade
aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para
aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a
importância das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do
passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar, duram uma
eternidade.
A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Vida ao natural
Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela percebeu que,
além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado.
O acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como
numa fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o homem. Ele,
o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe agradece: ele atiça o fogo na
lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela - que é sempre
inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades - pois ela nem
se lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem
para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra a sua missão. O
mais que ela faz é às vezes instigá-lo: “aquela acha”, diz-lhe, “aquela acha
ainda não pegou”. E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o
esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha. Não a comando seu, que é a
mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem. A outra
mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão
dele, sabe que quer, e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não,
ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca
dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então
sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então,
ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la
nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro – 1994
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