domingo, 11 de julho de 2010

Declaração de amor

Declaração de amor
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil.
Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento,
a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um
verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa
linguajem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um
verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando
das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. Às vezes ela
reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o
imprevisto de uma frase. Eu gosto de manejá-la - como gosto de estar montada
num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes para nos dar
para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos
estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar
com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me
chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem
a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas
como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para
mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter
aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse
virgem e límpida.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Deus
Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte?
Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude.
Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando.
Precisando mais do que a força humana. E estou precisando da minha própria
força. Sou forte mas também sou destrutiva. Autodestrutiva. E quem é
autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus
tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo
que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais.
Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E
também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou
inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu
tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor
dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus
venha. Venha antes que seja tarde demais.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Domingo de tarde
O jardim está ensopado de chuva, como são grossas as gotas, e o ar
brilha. A corola contínua de face opaca. Os seixos escorrem, as vidraças da
sala escorrem, as folhas pesam no ar, na lama treme em espinhos uma roseira
de rosas empinadas. Então é que chove mais. O que me pergunto muito
pensativa: em que terá dado a alegria do Concurso Hípico?
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Duas histórias a meu modo
A narradora relembra duas histórias, que ela escrevera para se divertir,
dando ao autor imaginário o nome de Marcel Aymé.
Félicien era um vinicultor francês que produzia o melhor vinho da região,
mas não gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de todos esse
fato. Félicien costumava até fingir-se de alcoolizado para esconder que não
bebia vinho.
Outra história: Etienne Duvilé, funcionário estadual em Paris, gostava de
vinho, mas não o tinha. Sua realidade era uma família grande que sonhava
com mesa farta e ele, com vinho. Depois do sonho de uma noite de sábado, a
sede de vinho piorou. Ele passou, acordado, a querer não só beber vinho mas
beber todo o mundo. Até hoje ele está internado num hospício, tratado com
água mineral “ que estanca sedes pequenas e não a grande”.
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
É para lá que eu vou
Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto,
às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de
alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se
continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra “tertúlia” e não
sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou
eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver.
Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por
enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma
livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada.
Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu
nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me
responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu
vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus
olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros.
Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a
que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras.
Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa
que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira
de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos
nós.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
É preciso também não perdoar
Uma entrevistada do programa da BBC, Inglaterra, na Hora das Mulheres,
falou sobre suas experiências como prisioneira de guerra:
- Quando uma pessoa já experimentou muitos sofrimentos, sabe apreciar
as fraquezas e as boas qualidades até mesmo dos próprios inimigos. Por que
deve ser nosso inimigo completamente mau, ou a vítima completamente boa?
Ambos são criaturas humanas, com o que é bom e o que é mau. E creio que se
apelarmos para o lado bom das pessoas teremos êxito, na maioria dos casos.
Sei o que ela quis dizer, mas está errado. Há uma hora em que se deve
esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado,
pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário
a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é
aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a
revolta. E não compreender os outros é que é certo.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Encarnação involuntária
A narradora tem o hábito de, quando vê uma pessoa que nunca viu,
observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la.
Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária. Durante toda a
viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-pazde-
se-ter-uma missão”.
A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no
momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações. Depois ela afirma que
não, que ela é uma pessoa. “E quando o fantasma de mim mesmo me toma –
então é um encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos
uma no ombro da outra”.
Uma vez, também em viagem, ela encontrou uma prostituta
perfumadíssima que fumava entrefechando o olhos e estes ao mesmo tempo
olhavam um homem que já estava sendo hipnotizado. Então, a narradora fez o
mesmo. “Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da
prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era
discreto demais. Falhou tudo”.
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Entender
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto
que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo
como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O
bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter
loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só
que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não
demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Era uma vez
Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma
história que começasse assim: “era uma vez...”. Para crianças? perguntaram.
Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de
minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com “era uma
vez”; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife,
e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver por quê.
Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma
história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento.
Mas se eles eram teimosos, eu também.
Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava
pronta para o verdadeiro “era uma vez”. Perguntei-me em seguida: e por que
não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.
E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me
era impossível. Eu havia escrito:
“Era uma vez um pássaro, meu Deus”.
in “Para não esquecer” - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Escrever
Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é
macio. Que é que eu posso escrever. Como recomeçar a anotar frases? A
palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com
elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que
atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra
materializa o espirito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem
o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de
um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as
palavras que digo - é por esconderem outras palavras. Qual é mesmo
a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso
dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e
não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas
acontece que eu quero é exactamente me unir a essa palavra proibida. Ou
será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim
mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade.
Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta
proibida.
As palavras é que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente não há
palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.
Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o
uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas
que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal
também.
Sim, mas é a sorte às vezes. Sempre quis atingir através da palavra
alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e
transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente
no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras.
Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho
uma falta de assunto essencial.
Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um
crepúsculo e pode ser uma aurora. Simplesmente as palavras do homem.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Esperança
Custei um pouco a compreender o que estava vendo. Estava vendo um
inseto pousado, verde, de pernas altas. Era uma "esperança" verde, o que
sempre me disseram que é de bom augúrio. Depois a esperança começou a
andar bem de leve sobre o colchão. Era verde-claro, com pernas que
mantinham seu corpo em plano alto e solto, um plano tão quebradiço quanto as
próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das
pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é
a outra própria superfície. Parecia com um raso desenho que tivesse saído do
papel e, verde, andasse. Mas andava, se sonâmbulo, determinado.
Sonâmbulo: uma folha mínima de árvore que tivesse ganho a independência
solitária dos que seguem o apagado traço de um destino. Ela, a esperança,
andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível
para mim. Sem tremor ela andava. Seu mecanismo interior não era trêmulo,
mas tinha o estremecimento regular do mais frágil relógio. Como seria o amor
entre duas esperanças? Verde e verde, e depois o mesmo verde, que, de
repente, por vibração de verdes, se torna verde. Amor predestinado pelo seu
próprio mecanismo aéreo. Mas onde estariam nela as glândulas de seu
destino, e as adrenalinas de seu seco e verde interior? Pois era um ser oco, um
enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes. Eu? Eu. Nós?
Nós. Nessa magra esperança de pernas altas, que caminharia sobre um seio
sem nem sequer acordar o resto do corpo, nessa esperança que não pode ser
oca, pois não existe linha oca, nessa esperança a energia atômica sem
tragédia se encaminha em silêncio. Nós? Nós.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Estrela perigosa
Estrela perigosa
Rosto ao vento
Barulho e silêncio
leve porcelana
templo submerso
trigo e vinho
tristeza de coisa vivida
árvores já floresceram
o sal trazido pelo vento
conhecimento por encantação
esqueleto de ideias
ora pro nobis
Decompor a luz
mistério de estrelas
paixão pela exactidão
caça aos vagalumes.
Vagalume é como orvalho
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.
No obscuro erotismo de vida cheia
nodosas raízes.
Missa negra, feiticeiros.
Na proximidade de fontes,
lagos e cachoeiras
braços e pernas e olhos,
todos mortos se misturam e clamam por vida.
Sinto a falta dele
como se me faltasse um dente na frente:
excrucitante.
Que medo alegre,
o de te esperar.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Eu sei mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra
vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a
amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já e noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso
ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar
nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
As bactérias de água potavel.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um
ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o
pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e
ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si
mesma.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Evolução de uma miopia
Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da
instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos
adultos um olhar satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o
fato de acharem-no inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais
do que ele próprio daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era
considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de
inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência
também lhe escapava. Pois às vezes, procurando imitar a si mesmo, dizia
coisas que iriam certamente provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro
de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha
dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa inteligente, cada adulto
olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido dos lábios,
um sorriso apenas indicado com os olhos, “como nós sorriríamos agora, se não
fôssemos bons educadores” - e, como numa quadrilha de dança de filme de
far-west, cada um teria de algum modo trocado de par e lugar. Em suma, eles
se entendiam, os membros de sua família; e entendiam-se à sua custa. Fora de
se entenderem à sua custa, desentendiam-se permanentemente, mas como
nova forma de dançar uma quadrilha: mesmo quando se desentendiam, sentia
que eles estavam submissos às regras de um jogo, como se tivessem
concordado em se desentenderem.
Às vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as
que haviam provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era
propriamente para reproduzir o sucesso passado, nem propriamente para
provocar o movimento mudo da família. Mas para tentar apoderar-se da chave
de sua “inteligência”. Na tentativa de descoberta de leis e causas, porém,
falhava. E, ao repetir uma frase de sucesso, dessa vez era recebido pela
distração dos outros. Com os olhos pestanejando de curiosidade, no começo
de sua miopia, ele se indagava por que uma vez conseguia mover a família, e
outra vez não. Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina alheia?
Mais tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria,
entrou por um estado de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o
hábito de pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo que
franzia o nariz, o que deslocava os óculos - exprimindo com esse cacoete uma
tentativa de substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de
aprofundar a própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de
estática: sempre fora capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem
que ela se transformasse em outro sentimento.
Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino
habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam
os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos
adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranqüila miopia exigindo lentes cada
vez mais fortes.
Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado
de permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a
chave não está com ninguém - foi através disso tudo que ele foi crescendo
normalmente, e vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco
nervoso, diziam, referindo-se ao tique dos óculos. Mas “nervoso” era o nome
que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família.
Outro nome que a instabilidade dos adultos lhe dava era o de “bem
comportado”, de “dócil”. Dando assim um nome não ao que ele era, mas à
necessidade variável dos momentos.
Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia
dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração.
Foi, por exemplo, quando lhe disseram que daí a uma semana ele iria
passar um dia inteiro na casa de uma prima. Essa prima era casada, não tinha
filhos e adorava crianças. “Dia inteiro” incluía almoço, merenda, jantar, e voltar
quase adormecido para casa. E quanto à prima, a prima significava amor extra,
com suas inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade - e tudo
isso daria margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa
dela, tudo aquilo que ele era teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o
amor, mais facilmente estável de apenas um dia, não daria oportunidade a
instabilidades de julgamento: durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo
menino.
Na semana que precedeu “o dia inteiro”, começou por tentar decidir se
seria ou não natural com a prima. Procurava decidir se logo de entrada diria
alguma coisa inteligente - o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria
julgado como inteligente. Ou se faria, logo de entrada, algo que ela julgasse
“bem comportado”, o que faria com que durante o dia inteiro ele seria o bem
comportado. Ter a possibilidade de escolher o que seria e, pela primeira vez
por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante.
Aos poucos, durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi
se alargando. E, com a capacidade que tinha de suportar a confusão - ele era
minucioso e calmo em relação à confusão - terminou descobrindo que até
poderia arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo.
Ou que poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim resolvesse.
O que o tranqüilizava era saber que a prima, com seu amor sem filhos e
sobretudo com a falta de prática de lidar com crianças, aceitaria o modo que
ele decidisse de como ela o julgaria. Outra coisa que o ajudava era saber que
nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo. Pois
prematuramente - tratava-se de criança precoce - era superior à instabilidade
alheia e à própria instabilidade. De algum modo pairava acima da própria
miopia e da dos outros. O que lhe dava muita liberdade. Às vezes apenas a
liberdade de uma incredulidade tranqüila. Mesmo quando se tornou homem,
com lentes espessíssimas, nunca chegou a tomar consciência dessa espécie
de superioridade que tinha sobre si mesmo.
A semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às
vezes seu estômago se apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos
ele estaria totalmente à mercê do amor sem seleção de uma mulher. “Amor
sem seleção” representava uma estabilidade ameaçadora: seria permanente, e
na certa resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A
estabilidade, já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no
primeiro passo da estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem
da instabilidade, que é a de uma correção possível.
Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na
casa da prima, além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de
poder de vez em quando ir ao banheiro, o que faria o tempo passar mais
depressa. Mas, com a prática de ser amado, já de antemão o constrangia que
a prima, uma estranha para ele, encarasse com infinito carinho as suas idas ao
banheiro. De um modo geral o mecanismo de sua vida se tornara motivo de
ternura. Bem, era também verdade que, quanto a ir ao banheiro, a solução
podia ser a de não ir nenhuma vez ao banheiro. Mas não só seria, durante um
dia inteiro, irrealizável como - como ele não queria ser julgado “um menino que
não vai ao banheiro” - isso também não apresentava vantagem. Sua prima,
estabilizada pela permanente vontade de ter filhos, teria, na não ida ao
banheiro, uma pista falsa de grande amor.
Durante a semana que precedeu “o dia inteiro”, não é que ele sofresse
com as próprias tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele
já havia dado: aceitara a incerteza, e lidava com os componentes da incerteza
com uma concentração de quem examina através das lentes de um
microscópio.
À medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas
se sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o
problema de decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe
desse temporariamente a certeza de “quem ele era”. Abandonou essas
cogitações e passou a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da
prima, sobre o tamanho do pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas
que abriria enquanto ela não visse. E finalmente entrou no campo da prima
propriamente dita. De que modo devia encarar o amor que a prima tinha por
ele?
No entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do
lado esquerdo.
E foi isso - ao finalmente entrar na casa da prima foi isso que num só
instante desequilibrou toda a construção antecipada.
O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse
a tendência de pôr as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia
se chamar de “deslumbrante”, se ele fosse daqueles que esperam que as
coisas o sejam ou não.
Houve o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a
segurança que ele encontrava na idéia de uma imprevisibilidade permanente,
tanto que até usava óculos, não se tornou inseguro pelo fato de encontrar logo
de início algo que não contara.
Em seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não
começou por ser evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera
com uma naturalidade que inicialmente o insultara, mas logo depois não o
insultara mais. Ela foi logo dizendo que ia arrumar a casa e que ele podia ir
brincando. O que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio
de sol.
Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o
golpe da inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois
quando ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas
sua fria observação sobre as plantas recebeu em resposta um “pois é”, entre
vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo
falhara, ele iria brincar de “não ser julgado”: por um dia inteiro ele não seria
nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade.
Mas à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se
fazendo sentir. E quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço,
a comida foi puro amor errado e estável: sob os olhos ternos da prima, ele se
adaptou com curiosidade ao gosto estranho daquela comida, talvez marca de
azeite diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que não
parecia com o amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois
faltava à prima a gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era
um amor sem a prévia gravidez. Era um amor pedindo, a posteriori, a
concepção. Enfim, o amor impossível.
O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o
futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse
nascido no ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria
do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois,
ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo
irrealizável. A estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era
um ser votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo
imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E
pela primeira vez teve então amor pela paixão.
E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O
relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia
e onde viveria. Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele
tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez
tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada
vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o
pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez
reverberada de cego.
In A Legião Estrangeira. São Paulo,
Ática, 1977
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Faz de conta
Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz
de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que
uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em
silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava
pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade,
precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que
contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de
conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de
saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de
Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não
passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não
ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e
ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para
desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que
tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela
fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos
úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de
faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava
pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz
de conta que ela não estava chorando.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Felicidade clandestina (trecho)
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos,
meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos
achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do
busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias
gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de
pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da
loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler,
eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorarlhe
emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um
tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de
Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me
que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu
não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me
traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava
num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando
bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e
que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas
em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a
andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da
livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua
casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro
ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu
como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se
repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.
Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer
esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.
Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio
de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a
olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e
silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a
aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações
a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco
elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com
enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você
nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia
ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a
potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à
porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se
refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora
mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é
tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o
livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando
como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com
as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar
em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas,
fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com
manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por
alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa
clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para
mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia
orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,
sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
amante.
In “Felicidade Clandestina”.
Rio de Janeiro, Rocco, 1998.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Feliz aniversário
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam
muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a
Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de
paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por
razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que
nem todos os laços fossem cortados - e esta vinha com o seu melhor vestido
para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três
filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-derosa
e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela
gravata.
Tendo Zilda - a filha com quem a aniversariante morava - disposto
cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar,
a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa,
aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua
posição de ultrajada. "Vim para não deixar de vir", dissera ela a Zilda, e em
seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino,
amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram
de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os
paetês.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria
depois. E como Zilda - a única mulher entre os seis irmãos homens e a única
que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a
aniversariante - e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os
croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos
de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras
fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a
babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e
nove anos.
Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos
de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões
sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito "Happy Birthday!", em
outros "Feliz Aniversário!" No centro havia disposto o enorme bolo açucarado.
Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara
as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não
desarrumar a mesa.
E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do
almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche,
borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de
guardado - sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava
sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.
De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando
curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em
quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o
vôo da mosca em torno do bolo.
Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.
Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo
mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria - que cheia
das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de
Ipanema - entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala
começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos
tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os
três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a
sala - e inaugurando a festa.
Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de
modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta á
cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena.
Parecia oca.
- Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que
Jonga tinha morrido. - Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as
mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos.
Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo
mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde.
Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim
senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.
- Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um
brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.
A velha não se manifestava.
Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram
saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de
cactos - nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou
para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente
aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os
presentes, amarga, irônica.
- Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.
A velha não se manifestava.
Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se
esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma urda,
continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de
presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que
todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma
cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro
de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras,
eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.
- Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em
negócios!
- Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente
para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.
- Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!
Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro - ela
era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.
E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que
os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras,
então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela
grande com um papelzinho colado onde estava escrito "89". Mas ninguém
elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam
pensando que fora por economia de velas - ninguém se lembrando de que
ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da
festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração
revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita
força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou
surpreendidos, "vamos! todos de uma vez!" - e todos de repente começaram a
cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida.
Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês.
Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a
português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem
baixo em inglês.
Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como
junto de uma lareira.
Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe
encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um
instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e
exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo
pronto no comutador do corredor - e acendeu a lâmpada.
- Viva mamãe!
- Viva vovó!
- Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.
- Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.
Bateram ainda algumas palmas ralas.
A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.
- Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve
partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos
aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: - parta
o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação , como se hesitando
um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho
de assassina.
- Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava
escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
- Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais
fôlego do que eu, disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido
lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas
acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.
Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio
de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os
olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As
passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se
desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o
seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para
todos, sorria.
- Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.
- Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a
esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração
passou-lhe rápido pelos músculos da cara.
- Hoje é dia da mãe! disse José.
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo
desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados,
rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu,
como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a
aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos.
E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira,
desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e
bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como
se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu
coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo?
Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente,
confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a
aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido
tão forte pudera dar á luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos
ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom
homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e
que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O
tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade
sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres
risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns
comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de
velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a
cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.
- Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou
ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os
desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação
à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na
mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. - Mamãe, que é isso! -
disse baixo, angustiada. - A senhora nunca fez isso! - acrescentou alto para
que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo
cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizouse
quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de
acordo que a velha não passava agora de uma criança.
- Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita
para todos.
Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora
crescidos - provavelmente já além dos cinqüenta anos, que sei eu! - os
meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam
escolhido! E que mulheres os netos - ainda mais fracos e mais azedos - haviam
escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados
de mulher que na hora não agüenta a mão, aquelas mulherezinhas que
casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas
elas com as orelhas cheias de brincos - nenhum, nenhum de ouro! A raiva a
sufocava.
- Me dá um copo de vinho! disse.
O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.
- Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e
baixinha.
- Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. - Que o
diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de
vinho, Dorothy! - ordenou.
Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de
socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se
manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum
pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a
bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na
mão. E olhavam impassíveis.
Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas
dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela
tempestade.
Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que
Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso.
Como se nada tivesse acontecido.
Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se
um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes
e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com
os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear,
teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três
filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira
reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um
drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o
que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando
distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se
servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.
E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram
sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à
espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso
amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas
tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas
já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala
rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado,
suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com
uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também
não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade
da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que
a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no
entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.
- Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e
sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.
A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua
pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu
aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar
um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera
quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as
pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.
- Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha
nas suas profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que
junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que
parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a
toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última
palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o
que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se
agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre
a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez:
É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida
é curta.
Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance.
Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu -
enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe
culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando
à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante,
enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis
olhar.
Mas a esse novo olhar - a aniversariante era uma velha à cabeceira da
mesa.
Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo
a nora seguiu-o espantada.
- Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da
mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.
- Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar
graça.
- Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa.
Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida
das mãos.
Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se
sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança
e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que
não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas - José
enxugou a testa com o, lenço - como Jonga fazia falta nessas horas! Também
fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga
tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo
um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera
aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros
filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar:
José enxugou a testa, heróico, risonho.
E de repente veio a frase:
- Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando,
assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que
vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido.
Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia
mais um ano.
- No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o
filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e
diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto
olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo,
compreendendo a alusão.
Então ela abriu a boca e disse:
- Pois é.
Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe
emocionado, grato, com os olhos úmidos:
- No ano que vem nos veremos, mamãe!
- Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.
Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.
As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de
Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As
escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que
seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda
ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras - pisado o último
degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da
rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.
Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram
rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma
cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando
o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na
despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e
dizer aquela palavra a mais - que palavra? eles não sabiam propriamente, e
olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que
era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber
como se desligar dos parentes sem brusquidão.
- Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com
vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo,
pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou
José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas
já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir
mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que
uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se
encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua,
pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de
Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: "Pelo menos
noventa anos", pensou melancólica a nora de Ipanema. "Para completar uma
data bonita", pensou sonhadora.
Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a
aniversariante sentada à cabeceira da mesa , erecta, definitiva, maior do que
ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu
mistério.
In "Laços de Família",
Editora Rocco - Rio de Janeiro,
1998, pág. 54.

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