Clarice Lispector
A roda branca
Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da
superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e
à nona se unem - crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito,
espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho
sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória
meu rude pensamento quer cantar.
Tento lembrar-me da memória, entender-te como se vê a aurora, uma
cadeira, outra flor. Não temas, não quero possuir-te. Alço-me em direção de tua
superfície que já é perfume.
Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região
assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina . . .
Na queda ridícula as asas de um anjo quebrei. Não abaixo a cabeça
rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua
harmonia, de tua alegria. Mas dói-me o coração grosseiro como de amor por
um homem.
E das mãos tão grandes sai a palavra envergonhada.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A sensível
Foi então que ela atravessou uma crise que nada parecia ter a ver com
sua vida: uma crise de profunda piedade. A cabeça tão limitada, tão bem
penteada, mal podia suportar perdoar tanto. Não podia olhar o rosto de um
tenor enquanto este cantava alegre - virava para o lado o rosto magoado,
insuportável, por piedade, não suportando a glória do cantor. Na rua de repente
comprimia o peito com as mãos enluvadas - assaltada de perdão. Sofria sem
recompensa, sem mesmo a simpatia por si própria.
Essa mesma senhora, que sofreu de sensibilidade como de doença,
escolheu um domingo em que o marido viajava para procurar a bordadeira. Era
mais um passeio que uma necessidade. Isso ela sempre soubera: passear.
Como se ainda fosse a menina que passeia na calçada. Sobretudo passeava
muito quando "sentia" que o marido a enganava. Assim foi procurar a
bordadeira, no domingo de manhã. Desceu uma rua cheia de lama, de galinhas
e de crianças nuas - aonde fora se meter! A bordadeira, na casa cheia de filhos
com cara de fome, o marido tuberculoso - a bordadeira recusou-se a bordar a
toalha porque não gostava de fazer ponto de cruz! Saiu afrontada e perplexa.
"Sentia-se" tão suja pelo calor da manhã, e um de seus prazeres era pensar
que sempre, desde pequena, fora muito limpa. Em casa almoçou sozinha,
deitou-se no quarto meio escurecido, cheia de sentimentos maduros e sem
amargura. Oh pelo menos uma vez não "sentia" nada. Senão talvez a
perplexidade diante da liberdade da bordadeira pobre. Senão talvez um
sentimento de espera. A liberdade.
Até que, dias depois, a sensibilidade se curou assim como uma ferida
seca. Aliás, um mês depois, teve seu primeiro amante, o primeiro de uma
alegre série.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A vez de missionária
Quando o fantasma de pessoa viva me toma. Sei que por vários dias
serei essa mulher do missionário. A magreza e a delicadeza dela já me
tomaram. É com algum deslumbramento, e prévio cansaço, que sucumbo ao
que vou experimentar viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista
prático: ando agora ocupado demais com os meus deveres para poder arcar
com o peso dessa vida nova que não conheço, mas cuja tensão evangelical já
começo a sentir. Percebo que no avião mesmo já comecei a andar com esse
passo de santa leiga. Quando saltar em terra, provavelmente já terei esse ar de
sofrimento físico e de esperança moral. No entanto quando entrei no avião
estava tão forte. Estava, não, estou. É que toda a minha força está sendo
usada para eu conseguir ser fraca. Sou uma missionária ao vento. Entendo,
entendo, entendo. Não entendo é nada: só que "não entendo" com o mesmo
fanatismo depurado dessa mulher pálida. Já sei que só daí a uns dias
conseguirei recomeçar a minha própria vida, que nunca foi própria, senão
quando o meu fantasma me toma.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
“Acabou de sair”
Sua enorme inteligência compreensiva, aquele seu coração vazio de mim
que precisa que eu seja admirável para poder me admirar. Minha grande
altivez: prefiro ser achada na rua. Do que neste fictício palácio onde não me
acharão porque - porque mando dizer que não estou, “ela acabou de sair”.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Amor
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô,
Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.
Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia
satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta.
Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada
vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando.
Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe
que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte.
Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras,
mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o
cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos,
crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de
fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,
tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que
plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um
pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande
tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico
encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com
o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima
desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a
cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita
pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das
coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair
num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha
como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir
que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de
pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência,
continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para
sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se
confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim
compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde,
quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro
da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu
coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar
para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma
habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer
compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia
deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio
exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã
acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo
empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma,
fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava
anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais
úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana
respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de
mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de
descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De
pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma
coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles...
Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam
jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego
profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir -
como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a
impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais
inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para
trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana deu um
grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o
bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava
pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com
dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria
entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de
jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego
interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando
inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede
e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova
arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos
trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava
feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não
sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o
mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de
que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.
Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de
sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo
um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de
seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que
se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um
momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao
banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem
ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso
com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais
abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários
da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos
estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o
mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de
piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuiam.
Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar,
depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados
entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade
extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não
explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das
outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se
escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se
seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E
através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na
fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com
pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um
momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de
medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que
descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso
rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.
Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do
Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não
havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra
dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas
surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais
apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?
Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais,
grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada
parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato.
Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras
vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar,
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho
secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros
apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade
intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas
patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era
profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os
dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos
por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que
precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada.
A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele,
estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde
vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva
não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A
decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via
com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina
do mundo.
A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu
cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na
sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era
fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara
culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou
pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno
de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados,
sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a
ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.
Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que
sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo
lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande,
quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a
lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que
levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver.
O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e
rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto.
Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo,
amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre
fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a
ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim
Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo
demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.
O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares
pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse.
Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu
choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto,
seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança
mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de
onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue
subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que
tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhála.
De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só
piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O
homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para
o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto,
lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e
que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar o
leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim
mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia
água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma
pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu
coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a
como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou
com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a
uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a
cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão,
onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água -
havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O
mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou
com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo
tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de
verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida
silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na
cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda,
em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a
piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A
fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos
dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião
estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o
jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no
tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um
pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a
primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a
família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver
defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças
cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana
prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas,
ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida
e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos
levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das
crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse
o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia
entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!
pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café
derramado.
- O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
- Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com
olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
- Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu
ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa
tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste.
É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que
pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para
trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho,
por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se
apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
As águas do Mundo
Às seis horas da manhã, a mulher entra no mar: este, o mais ininteligível
das existências não humanas; ela, o mais ininteligível dos seres vivos.
Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avançando, abre o mar pelo
meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos cheia de água, bebe em
goles grandes. “E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o
líquido espesso de um homem.
Agora ela está toda igual a si mesma.”
Mergulha de novo, de novo bebe mais água. Como contra os costados de
um navio, a água bate, volta, não recebe transmissões. Depois caminha na
água e volta à praia. Agora, pisa na areia. “E sabe de algum modo obscuro que
seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um
perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.”
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
As maniganças de Dona Frozina
- Também com esse dinheirinho mirrado...
Isso é o que a viúva dona Frozina diz do montepio. Mas dá para ela
comprar Leite de Rosas e tomar verdadeiros banhos com o líquido leitoso.
Dizem que sua pele é espetacular. Usa desde mocinha o mesmo produto e tem
cheiro de mãe.
É muito católica e vive em igrejas. Tudo isso cheirando a Leite de Rosas.
Como uma menina. Ficou viúva com vinte e nove anos. E de lá para cá - nada
de homem. Viúva à moda antiga. Severa. Sem decote e sempre com mangas
compridas.
- D. Frozina, como é que a senhora arrumou sua vida sem homem?,
quero lhe perguntar.
A resposta seria:
- Maniganças, minha filha, maniganças.
Dizem dela: muita gente jovem não tem o espírito que ela tem. Está na
casa dos setenta, a excelentíssima senhora dona Frozina. É sogra boa e ótima
avó. Boa parideira que foi. E continuou frutificando. Eu queria ter uma conversa
séria com d. Frozina.
- Dona Frozina, a senhora tem qualquer coisa a ver com d. Flor e seus
três maridos?
- Que é isso, minha amiga, mas que pecado grande! Sou viúva virgem,
minha filha.
Seu marido se chamava Epaminondas, com o apelido de Moço.
Olhe, d. Frozina, tem nomes piores do que o seu. Tem uma que se chama
Flor de Lis - e como acharam ruim o nome, deram-lhe apelido pior: Minhora.
Quase minhoca. E os pais que chamaram seus filhos de Brasil, Argentina,
Colômbia, Bélgica e França? A senhora escapou de ser um país. A senhora e
suas maniganças. “Ganha-se pouco”, diz ela, “mas é divertido”.
Divertido como, minha senhora? A senhora não conheceu então a dor?
Foi driblando a dor pela vida afora? Sim, senhora, com minhas maniganças fui
escapando.
D. Frozina não toma Coca-cola. Acha que é moderno demais.
- Mas todo mundo toma!
- Eu é que não, cruz-credo! parece até remédio contra bichas, Deus me
livre e guarde.
Mas se acha o gosto de remédio é porque já provou.
D. Frozina usa o nome de Deus mais do que deveria. Não se deve usar o
nome de Deus em vão. Mas com ela não cola essa lei.
E ela se agarra nos santos. Os santos já estão enjoados dela, de tanto ela
abusar. De “Nossa Senhora” nem se fala; a mãe de Jesus não tem sossego. E,
como vem do norte, vive dizendo: Virgem Maria! a cada espanto. E são muitos
os seus espantos de viúva ingênua.
D. Frozina rezava todas as noites. Fazia uma prece para cada santo. Aí
aconteceu o desastre: ela adormeceu no meio.
- D. Frozina, que coisa horrível a senhora cochilar no meio da reza
deixando os santos à toa!
Ela respondeu com um gesto de mão de descaso:
- Ah, minha filha, cada um que pegue o dele.
Teve um sonho muito esquisitinho: sonhou que viu o Cristo do Corcovado
- e cadê os braços abertos? Estavam era bem cruzados, e o Cristo enjoado
como se dissesse: vocês que se arranjem, estou farto. Era um pecado esse
sonho.
D. Frozina, chega de maniganças. Fique com o seu Leite de Rosas e “io
me ne vado”. (É assim que se diz em italiano quando uma pessoa quer ir
embora?)
Dona Frozina, excelentíssima senhora, quem está farta da senhora sou
eu. Adeus, pois. Cochilei no meio da reza.
P.S. Procure no dicionário o que quer dizer maniganças. Mas adianto-lhe
o serviço: manigança - prestidigitação; manobra misteriosa, artes de berliques
e berloques. (Do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa).
Um detalhe antes de acabar:
D. Frozina quando era pequena, lá em Sergipe, comia acocorada atrás da
porta da cozinha. Não se sabe por quê.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
As três experiências
Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha
vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus
filhos. “O amar os outros” é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma
com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta
para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um
minuto do tempo que faz minha vida . Amar os outros é a única salvação
individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes
receber amor em troca.
E nasci para escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo. Eu tive
desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das
vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque
para outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que
para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de
nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo
escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse
a língua em meu poder. E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como se
fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa
capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu
chamo de viver e escrever.
Quanto aos meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser
mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão
aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho
seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não
fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles
no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para
o vôo necessário, e eu ficarei sozinha: É fatal, porque a gente não cria os filhos
para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha,
estarei seguindo o destino de todas as mulheres.
Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte
mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o
que é meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em
escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É
como se o mundo estivesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que me
espera.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Banhos de mar
Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos
de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em
Olinda, Recife.
Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado
antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em
sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda
ainda na escuridão?
De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em
expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada
e despertava o resto da família. Vestíamos depressa e saíamos em jejum.
Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.
Saímos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada.
E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se
aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade
começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo.
No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol
escondido nos banhava e banhava o mundo.
Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com
os bichos-de-pé: "Olhe um porco de verdade!" gritei uma vez, e a frase de
deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras da minha família, que de
vez em quando me dizia rindo: "Olhe um porco de verdade."
Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer.
Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma
criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o
futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de
uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.
No bonde mesmo, começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao
nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as
cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de
roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu
saía da cabina e sabia o que me esperava.
O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um
fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo.
Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o
sol nascia. Havia um salva vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as
senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos
braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.
O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh,
bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses
banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei
que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era
muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as
mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até
minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.
Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que
trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal.
Meus cabelos salgados me colavam na cabeça.
Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a
brisa ía secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço
para sentir sua grossura de sal e iodo.
Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me
lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de
tanta ventura e aventura.
Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o
mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade
que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.
A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir
com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais?
Nunca mais.
Nunca.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Cem anos de perdão
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas,
então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes
que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos
muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.”
“Não, eu já disse que os brancos são meus.” Parávamos às vezes longo
tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de “essa casa é minha”,
paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o
imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas
as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta
cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa
altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de
meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E
não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa,
mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não
havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de
venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o
carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu
desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria
cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente,
cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente
com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas
da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes
raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco
enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante
para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas
veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa
foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de
perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo,
arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha
também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei
segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente
para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de
pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro
dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era
sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e
fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com
aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa,
rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da
igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de
pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma.
Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão
por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até
meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu
esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como
ensanguentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes
demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas
tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que
pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Come, meu filho
O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece
chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está
embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram,
mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá
embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe
que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
- ...
- Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu
também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo
nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que
nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros
lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só
acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato
chato, mamãe?
- Chat... raso, quer dizer.
- Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no
chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece
inreal?
- Irreal.
- Por que você acha?
- Se diz assim.
- Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu
também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem
igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga.
Você não acha que pepino parece inventado?
- Parece.
- Onde foi inventado feijão com arroz?
- Aqui.
- Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
- Aqui.
- Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor.
Para você carne tem gosto de carne?
- Às vezes.
- Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
- Não.
- E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz
que carne tem vitamina.
- Não fala tanto, come.
- Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer,
é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
- Adivinhou. Come, Paulinho.
- Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em
comida, mas você vai e não esquece.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Começos de uma fortuna
Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar. E que mais se
assemelhavam à idéia que fazemos do tempo.
A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava
do jardim, como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia.
Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e
sobrevoavam o açucareiro. A essa hora, Tijuca não havia despertado de todo.
“Se eu tivesse dinheiro...” pensava Artur, e um desejo de entesourar, de
possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar desprendido e
contemplativo.
- Não sou um jogador.
- Deixe de tolices, respondeu a mãe. Não recomece com histórias de
dinheiro.
Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa
premente que terminasse em soluções. Um pouco da mortificação do jantar da
véspera sobre mesadas, com o pai misturando autoridade e compreensão e a
mãe misturando compreensão e princípios básicos - um pouco da mortificação
da véspera pedia, no entanto, prosseguimento. Só que era inútil procurar em si
a urgência de ontem. Cada noite o sono parecia responder a todas as suas
necessidades. E de manhã, ao contrário dos adultos que acordam escuros e
barbados, ele despertava cada vez mais imberbe. Despenteado, mas diferente
da desordem do pai, a quem parecia terem acontecido coisas durante a noite.
Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora,
como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação. Até tomarem café
todos estavam irritados ou pensativos, inclusive a empregada. Não era esse o
momento de pedir coisas. Mas para ele era uma necessidade pacífica a de
estabelecer domínios de manhã: cada vez que acordava era como se
precisasse recuperar os dias anteriores. Tanto o sono cortava suas amarras,
todas as noites.
- Não sou um jogador nem um gastador.
- Artur, disse a mãe irritadíssima, já me bastam as minhas preocupações!
- Que preocupações? perguntou ele com interesse.
A mãe olhou-o seca como a um estranho. No entanto ele era muito mais
parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família. Apertou os lábios.
- Todo o mundo tem preocupações, meu filho, corrigiu-se ela entrando
então em nova modalidade de relações, entre maternal e educadora.
E daí em diante sua mãe assumira o dia. Dissipara-se a espécie de
individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela. Desde
sempre, ou aceitavam-no ou reduziam-no a ser ele mesmo. Em pequeno
brincavam com ele, jogavam-no para o ar, enchiam-no de beijos - e de repente
ficavam “individuais” - largavam-no, diziam gentilmente mas já intangíveis:
“agora acabou”, e ele ficava todo vibrante de carícias, com tantas gargalhadas
ainda por dar. Tornava-se implicante, mexia num e noutro pé, cheio de uma
cólera que, no entanto, se transformaria no mesmo instante em delícia, em
pura delícia, se eles apenas quisessem.
- Coma, Artur, concluiu a mãe e de novo ele já podia contar com ela.
Assim imediatamente tornou-se menor e muito mais malcriado:
- Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém liga. Quando
digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para
beber.
- Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar ou para
beber? disse o pai entrando na sala e encaminhando-se para a cabeceira da
mesa. Ora essa! que pretensão!
Ele não contara com a chegada do pai. Desnorteado, porém habituado,
começou:
- Mas papai! sua voz desafinou numa revolta que não chegava a ser
indignada. Como contrapeso, a mãe já estava dominada, mexendo
tranqüilamente o café com leite, indiferente à conversa que parecia não passar
de mais algumas moscas. Afastava-as do açucareiro com mão mole.
- Vá saindo que está na sua hora, cortou o pai. Artur virou-se para sua
mãe. Mas esta passava manteiga no pão, absorta e prazerosa. Fugira de novo.
A tudo diria sim, sem dar nenhuma importância.
Fechando a porta, ele de novo tinha a impressão de que a cada momento
entregavam-no à vida. Assim é que a rua parecia recebê-lo. “Quando eu tiver
minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui e farei visitas e tudo
será diferente”, pensou.
A vida fora de casa era completamente outra. Além da diferença de luz -
como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que
disposições haviam tomado as circunstâncias durante a noite - além da
diferença de luz, havia a diferença do modo de ser. Quando era pequeno, a
mãe dizia: “fora de casa ele é uma doçura, em casa um demônio”. Mesmo
agora, atravessando o pequeno portão, ele se tornara visivelmente mais moço
e ao mesmo tempo menos criança, mais sensível e sobretudo sem assunto.
Mas com um interesse dócil. Não era uma pessoa que procurasse conversas,
mas se alguém lhe perguntava como agora: “menino, de que lado fica a
igreja?”, ele se animava com suavidade, inclinava o longo pescoço, pois todos
eram mais baixos que ele; e informava atraído, como se nisso houvesse uma
troca de cordialidades e um campo aberto à curiosidade. Ficou atento olhando
a senhora dobrar a esquina em caminho da igreja, pacientemente responsável
pelo seu itinerário.
- Mas dinheiro é feito para gastar e você sabe com quê, disse-lhe
Carlinhos intenso.
- Quero para comprar coisas, respondeu um pouco vago.
- Uma bicicletinha? riu Carlinhos ofensivo, corado na intriga.
Artur riu desagradado, sem prazer.
Sentado na carteira, esperou que o professor se erguesse. O pigarro
deste, prefaciando o começo da aula, foi o sinal habitual para os alunos se
sentarem mais para trás, abrirem os olhos com atenção e não pensarem em
nada. “Em nada”, foi a resposta perturbada de Artur ao professor que o
interpelava irritado. “Em nada” era vagamente em conversas anteriores, em
decisões pouco definitivas sobre um cinema à tarde, em - em dinheiro. Ele
precisava de dinheiro. Mas durante a aula, obrigado a estar imóvel e sem
nenhuma responsabilidade, qualquer desejo tinha como base o repouso.
- Você então não viu logo que Glorinha estava querendo ser convidada
pro cinema? disse Carlinhos, e ambos olharam com curiosidade a menina que
se afastava segurando a pasta. Pensativo, Artur continuou a andar ao lado do
amigo,olhando as pedras do chão.
- Se você não em dinheiro para duas entradas, eu empresto, você paga
depois.
Pelo visto, do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a
empregá-lo em mil coisas.
- Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo ao irmão
de Antônio, respondeu evasivo.
- E então? que é que tem! explicou o outro, prático e veemente.
“E então”, pensou com uma pequena cólera, “e então, pelo visto, logo que
alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como
se perde dinheiro.”
- Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você ter
uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.
Os dois riram. Depois disso ele ficou mais alegre, mais confiante.
Sobretudo menos oprimido pelas circunstâncias.
Mas depois já era meio-dia e qualquer desejo se tornava mais árido e
mais duro de suportar. Durante todo o almoço ele pensou com rispidez em
fazer ou não fazer dívidas e sentia-se um homem aniquilado.
- Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã, disse a mãe. O
fato é que acorda bem disposto mas aparece para o almoço com essa cara
pálida. Fica logo com as feições duras, é o primeiro sinal.
- Não é nada, é o desgaste natural do dia, disse o pai bem humorado.
Olhando-se no espelho do corredor antes de sair, realmente era a cara de
um desses rapazes que trabalham, cansados e moços. Sorriu sem mexer os
lábios, satisfeito no fundo dos olhos. Mas à porta do cinema não pôde deixar de
pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga.
- Vocês preferem sentar na frente ou no meio? perguntava Glorinha.
Diante disso, Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu
disfarçado o dinheiro da entrada de Glorinha.
- Pelo visto, o cinema está estragado, disse de passagem para Carlinhos.
Arrependeu-se logo depois de ter falado, pois o colega mal ouvira, ocupado
com a menina. Não era necessário diminuir-se aos olhos do outro, para quem
uma sessão de cinema só tinha a ganhar com uma garota.
Na realidade o cinema só esteve estragado no começo. Logo depois ele
relaxou o corpo, esqueceu-se da presença ao lado e passou a ver o filme.
Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto olhoua
disfarçado. Com um pouco de surpresa constatou que ela não era
propriamente a exploradora que ele supusera: lá estava Glorinha inclinada para
frente, a boca aberta pela atenção. Aliviado, recostou-se de novo na poltrona.
Mais tarde, porém, indagou-se se tinha ou não sido explorado. E sua
angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror.
O coração batia como um punho. Além do rosto espantado, solto no vidro da
vitrina, havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa
familiaridade. “Pelo visto, fui”, concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao
perfil sem culpa de Glorinha. Aos poucos a própria inocência da menina tornouse
a sua culpa maior: “então ela explorava, explorava, e depois ficava toda
satisfeita vendo o filme?” Seus olhos se encheram de lágrimas. “Ingrata”,
pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação. Como a palavra era um
símbolo de queixa mais do que de raiva, ele se confundiu um pouco e sua raiva
acalmou-se. Parecia-lhe agora, de fora para dentro e sem nenhuma vontade,
que ela deveria ter pago daquele modo a entrada do cinema.
Mas diante dos livros e cadernos fechados, seu rosto desanuviava-se.
Deixou de ouvir as portas que batiam, o piano da vizinha, a voz da mãe
no telefone. Havia um grande silêncio no seu quarto, como num cofre. E o fim
da tarde parecia com uma manhã. Estava longe, longe, como um gigante que
pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos que
viravam e reviravam um lápis. Havia instantes em que respirava pesado como
um velho. A maior parte do tempo, porém, seu rosto mal aflorava o ar do
quarto.
- Já estudei! gritou para a mãe que interpelava sobre o barulho da água.
Lavando cuidadosamente os pés na banheira, ele pensou que a amiga de
Glorinha era melhor que Glorinha. Nem tinha procurado reparar se Carlinhos
“aproveitara” ou não da outra. A essa idéia, saiu muito depressa da banheira e
parou diante do espelho da pia. Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados.
Não! não queria explicar-se com Carlinhos e ninguém lhe diria como usar
o dinheiro que teria, e Carlinhos podia pensar que era com bicicletas, mas se
fosse o que é que tem? e se nunca, mas nunca, quisesse gastar o seu
dinheiro? e cada vez ficasse mais rico?... que é que há, está querendo briga?
você pensa que...
- ... pode ser que você esteja muito ocupado com os seus pensamentos,
disse a mãe interrompendo-o, mas ao menos coma o seu jantar e de vez em
quando diga uma palavra.
Então ele, em súbita volta à casa paterna:
- Ora a senhora diz que na mesa não se fala, ora quer que eu fale, ora diz
que não se fala de boca cheia, ora...
- Olhe o modo como você fala com sua mãe, disse o pai sem severidade.
- Papai, chamou Artur docilmente, com as sombrancelhas franzidas,
papai, como é promissórias?
- Pelo visto, disse o pai com prazer -, pelo visto o ginásio não serve para
nada.
- Coma mais batata, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois
homens para si.
- Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você
tenha uma dívida.
in “Laços de família”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Como se chama
Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto
- como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que
não gosta mais da gente - como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar
ocupada, e de repente parar por ter sido tomada por uma desocupação beata,
milagrosa, sorridente e idiota - como se chama o que se sentiu? O único modo
de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a
própria pergunta. Qual é o nome? e é este o nome.
in "Para não esquecer" - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Como tratar o que se tem
Existe um ser que mora em mim como se fosse casa sua, e é. Trata-se de
um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca
morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de
inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não
tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu
beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai
sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa que não tenha medo do que
é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta
chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado
com doçura e autoridade ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele
trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a
gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer
ou de cólera.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Dá-me a tua mão
Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio
e nesse silêncio profundo se esconde
minha imensa vontade de gritar
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Das vantagens de ser bobo
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir,
tocar no mundo.
O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas.
Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou
pensando”.
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se
lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade,
espontaneamente lhe vem a idéia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.
Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se
descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas
humanas.
O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver.
O bobo parece nunca ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um
Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na
palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda
mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se
mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vêlo
sequer.
Resultado: não funciona.
Chamado um técnico, a opinião deste era que o aparelho estava tão
estragado que o concerto seria caríssimo: mais vale comprar outro.
Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não
desconfiar, e, portanto estar tranqüilo.
Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O
esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros.
Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera.
É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre
frase: "Até tu, Brutus?"
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por
bobos.
Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a
vida.
Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás,
não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir
bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser
bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca.
É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
In “A Descoberta do Mundo”
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