domingo, 11 de julho de 2010

Fico com medo...

Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Fico com medo...
Fico com medo. Mas o coração bate.
O amor inexplicável faz o coração
bater mais depressa. A garantia única é que eu nasci.
Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser:
Eis os limites de minha possibilidade.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Há momentos na vida
Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos é tirar
esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la.
Sonhe com aquilo que você quiser.
Vá para onde queira ir.
Seja o que você quer ser,
Porque você possui apenas uma vida,
e nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldade para faze-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que
aparecem em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles reconhecem a importância das pessoas que passam por
suas vidas.
O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros a as
decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram uma
eternidade.
A vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
História interrompida
Ele era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a entender que
seu maior defeito consistia na sua tendência para a destruição. E por isso,
dizia, alisando os cabelos negros como quem alisa o pêlo macio e quente de
um gatinho, por isso é que sua vida se resumia num monte de cacos: uns
brilhantes, outros baços, uns alegres, outros como um "pedaço de hora
perdida", sem significação, uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já
espedaçados.
Eu, na verdade não sabia o que retrucar e lamentava não ter um gesto de
reserva, como o seu, de alisar o cabelo, para sair da confusão. No entanto,
para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é
relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda. Eu lhe respondia
que mesmo destruindo ele construía: pelo menos esse monte de cacos para
onde olhar e de que falar. Perfeitamente absurdo. Ele, sem dúvida, também o
achava, porque não respondia. Ficava muito triste, a olhar para o chão e a
alisar seu gatinho morno.
Assim se passavam as horas. Às vezes eu mandava buscar uma xícara
de café, que ele bebia com muito açúcar e gulosamente. E eu pensava um
pensamento muito engraçado: é que se achasse que andava a destruir tudo,
não teria tanto gosto em beber café e não pediria mais. Uma leve suspeita de
que W... era um artista, vinha-me à mente. Para desculpá-lo, respondia-me:
destrói-se tudo em torno de si, mas a si próprio e aos desejos (nós temos um
corpo) não se consegue destruir. Pura desculpa.
Num dia de verão abri a janela de par em par. Pareceu-me que o jardim
entrara na sala. Eu tinha vinte e dois anos e sentia a natureza em todas as
fibras. Aquele dia estava lindo. Um sol mansinho, como se nascesse naquele
instante, cobria as flores e a relva. Eram quatro horas da tarde. Ao redor o
silêncio.
Voltei-me para dentro, amolecida pela calma daqueles momentos. Queria
dizer-lhe:
- Parece-me que essa é a primeira das horas, mas que depois dela mais
nenhuma se seguirá.
Mentalmente ouvi-o responder:
- Isso é apenas uma tendência sentimental indefinível, misturada à
literatura da moda, muito subjetivista. Daí essa confusão de sentimentos, que
não tem verdadeiramente um conteúdo próprio, a não ser o seu estado
psicológico, muito comum em moças solteiras de sua idade...
Tentei explicar-lhe, combatê-lo... Nenhum argumento. Voltei-me desolada, olhei
seu rosto triste e ficamos calados.
Foi então que pensei aquela coisa terrível: "Ou eu o destruo ou ele me
destruirá".
Era preciso evitar a todo custo que aquela tendência analista, que terminava
pela redução do mundo a míseros elementos quantitativos, me atingisse.
Precisava reagir. Queria ver se o cinzento de suas palavras conseguia
embaçar meus vinte e dois anos e a clara tarde de verão. Decidi-me, disposta a
começar no mesmo momento a lutar. Voltei-me para ele, apoiei as mãos no
parapeito da janela, entrefechei os olhos e sibilei:
- Essa hora me parece a primeira das horas e também a última!!
Silêncio. Lá fora, a brisa indiferente.
Ele ergueu os olhos para mim, levantou a mão sonolenta e acariciou os
cabelos. Depois pôs-se a riscar com a unha os desenhos em xadrez da toalha
de mesa.
Fechei os olhos, abandonei os braços ao longo do corpo. Meus lindos e
luminosos vinte e dois anos... Mandei vir café e com muito açúcar.
Depois que nos separamos, no fim da estrada, voltei muito devagar para
casa, mordendo um capim e chutando todos os seixos brancos do caminho. O
sol já se tinha deitado e no céu sem cor já se viam as primeiras estrelas.
Estava com preguiça de chegar em casa: invariavelmente o jantar, o longo
serão vazio, um livro, o bordado e, enfim, a cama, o sono. Enveredei pelo
atalho mais comprido. A relva crescida era penugenta e quando o vento
soprava forte ela me acariciava as pernas.
Mas eu estava inquieta.
Ele era moreno e triste. E sempre andava de escuro. Oh, sem dúvida eu
gostava dele. Eu, muito branca e alegre, ao seu lado. Eu, numa roupa florida,
cortando rosas, e ele de escuro, não, de branco, lendo um livro.
Sim, nós formávamos um belo par. Achei-me fútil, assim, imaginando
quadros. Mas justifiquei-me: precisamos contentar a natureza, enfeitá-la. Pois
eu jamais plantaria jasmim junto de girassóis, como ousaria... Bem, bem, o que
precisava era de resolver "meu caso".
Durante dois dias pensei em cessar. Queria achar uma fórmula que mo
desse para mim. Queria achar a fórmula que pudesse salvá-lo. Sim, salvá-lo. E
essa idéia me era agradável porque justificaria os meios que empregasse para
prendê-lo. Tudo me parecia porém estéril. Ele era um homem difícil, distante, e
o pior é que falava francamente de seus pontos fracos: por onde atacá-lo
então, se ele se conhecia?
O nascimento de uma idéia é precedido por uma longa gestação, por um
processo inconsciente para o gestante. Assim explico a minha falta de apetite
no jantar magnífico, minha insônia agitada numa cama de lençóis frescos, após
um dia atarefado. Às duas horas da madrugada, enfim, nasceu ela, a idéia.
Sentei-me alvoroçada na cama, pensei: veio depressa demais para ser boa;
não se entusiasme; deite-se, feche os olhos e espere que venha a serenidade.
Levantei-me porém e, descalça para não acordar Mira, pus-me a andar pelo
quarto, como um homem de negócios à espera do resultado da Bolsa. Porém
cada vez mais parecia-me que achara a solução.
Com efeito, homens como W... passam a vida à procura da verdade,
entram pelos labirintos mais estreitos, ceifam e destroem metade do mundo
sob o pretexto de que cortam os erros, mas quando a verdade lhes surge
diante dos olhos é sempre inopinadamente. Talvez porque tenham tomado
amor à pesquisa, por si mesma, e se tornem como o avarento que acumula,
acumula apenas, esquecido da primitiva finalidade pela qual começou a
acumular. O fato é que com W... eu só conseguiria qualquer coisa pondo-o em
estado de "shock".
E eis como. Dir-lhe-ia (com o vestido azul que me fazia muito mais loura),
a voz suave e firme, fixando-o nos olhos:
- Tenho pensado muito a nosso respeito e resolvi que só nos resta...
Não. Simplesmente,
- Vamos nos casar? Não, não. Nada de perguntas.
- W..., nós vamos casar.
Sim, eu conhecia os homens. E sobretudo conhecia-o fundamente. Ele
não teria o recurso do gesto preferido. E permaneceria estático, atônito. Porque
estaria diante da Verdade... Ele gostava de mim e talvez porque só a mim não
conseguira destruir com suas análises (eu tinha vinte e dois anos).
Não consegui dormir durante o resto da noite. Estava tão desperta que o
ressonar de Mira me enervava, e até a lua, muito redonda, cortada ao meio por
um galho de folhas finas, parecia-me defeituosa, com uma inchação do lado
excessivamente artificial. Queria abrir a luz, mas ouvia de antemão as queixas
de Mira a mamãe, no dia seguinte.
Levantei-me com a disposição de uma mocinha no dia do seu casamento.
Cada to meu era preparatório, cheio de finalidades, como parte de um ritual.
Passei a manhã muito agitada, pensando na decoração do ambiente, na roupa,
nas flores, frases e diálogos. Depois disso, como arranjar a voz suave e firme,
serena e meiga? A continuar naquela febre, eu correria o riso de receber W...
com gritos nervosos: "W... vamos casar imediatamente, imediatamente".
Peguei numa folha de papel e enchi-a de alto a baixo: "Eternidade. Vida.
Mundo. Deus. Eternidade. Vida. Mundo. Deus. Eternidade..." Essas palavras
matavam o sentido de muitos de meus sentimentos e deixavam-me fria por
umas semanas, tão minúscula eu me descobria.
Mas na verdade eu não queria ficar fria: desejava viver o momento até
esgotá-lo. Precisava apenas conquistar um rosto menos afogueado. Sentei-me
para uma longa costura.
A serenidade foi pouco a pouco voltando. E com ela, uma profunda e
emocionante certeza de amor. Mas pensei, não existe mesmo nada, nada por
que eu troque os instantes que vêm! Só duas ou três vezes na vida
experimenta-se tal sensação e as palavras esperança, felicidade, saudade, a
ela se ligam, descobri. E fechava os olhos e imaginava-o tão vivo que sua
presença se tornava quase real: "sentia" suas mãos sobre as minhas e uma
ligeira tontura me atordoava. ("Oh, meu Deus, me perdoe, mas a culpa é do
verão, a culpa é de ele ser tão bonito e moreno e eu tão loura!").
A idéia de que eu estava sendo feliz me enchia tanto que eu precisava
fazer alguma coisa, alguma bondade, para não ficar com remorsos. E se eu
desse a golinha de renda a Mira? Sim, o que é uma golinha de renda, embora
bonita, diante de... "Eternidade. Vida. Mundo...Amor"?
Mira tem quatorze anos e é muito exagerada, quando entrou esbaforida
no quarto e fechou a porta atrás de si, com grandes gesto, eu disse:
- Beba um copo d'água e depois conta como a gata teve trinta gatinhos e
dois cachorrinhos pretos.
- Clarinha disse que ele se matou! Se matou com um tiro na cabeça... É
verdade, é? É mentira, não é?
E repentinamente a história se partiu. Nem teve ao menos um fim suave.
Terminou com a brusquidão e a falta de lógica de uma bofetada em pleno
rosto.
Estou cansada e tenho um filho. Não lhe dei o nome de W... E não costumo
olhar para trás: tenho em mente ainda o castigo que Deus deu à mulher de
Loth. E só escrevi "isso" para ver se conseguia achar uma resposta a
perguntas que me torturam, de quando em quando, perturbando minha paz:
que sentido teve a passagem de W... pelo mundo? Que sentido teve a minha
dor? Qual o fio que esses fatos a... "Eternidade. Vida. Mundo. Deus."?
In A bela e a fera.
© 1979, by Paulo Gurgel Valente e Pedro Gurgel Valente
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Macacos
Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de presente. Era um
macacão ainda não crescido, que não dava sossego a ninguém. A dona da
casa-narradora estava exausta.
Uma amiga entendeu o sofrimento dela e chamou uns meninos do morro.
Eles levaram o macaco.
Um ano depois, a narradora comprou uma macaquinha nas mãos de um
vendedor em Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette.
Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos.
Três dias depois, Lisette estava na área de serviço sendo admirada pela
família. Ela encantava sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a
morte chegando. Levaram-na rapidamente para o veterinário, enfrentando um
trânsito difícil. Ela estava tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica.
No dia seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais velho disse
para a mãe: “Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto de você’,
respondi.”
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Mal-estar de um anjo
Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas
chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade e
a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio
carioca, sem refúgio possível, Copacabana com água entrando pelas lojas
rasas e fechadas, águas grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando
para encontrar calçadas invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se
juntasse o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já
havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral gravado na carne:
estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que só
caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu,
os cabelos escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para
a Arca, pois já selecionaram o melhor casal de minha espécie.
Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a
alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa.
A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria
casa própria. Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava,
parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que
ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem,
hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava
paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
E eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase
centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é que eu me
apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar ao luxo de pedir,
lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me
deram. Contendo o desespero, o que sempre me dá uma aparência de força,
disse ao chofer: “o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos
pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!”
Para minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda
sem entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas moviase
- e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a pouco já estava
pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí a pouco era a dona-decasa
de meu táxi, já tomara posse de direito do que gratuitamente me fora
dado, e energicamente tomava medidas úteis: torcia cabelos e roupas, tirava
os sapatos amolecidos, enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A
verdade, sem pudor, é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando
motivos, mas chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem
confortável no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.
Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este
avançava, ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E
literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde demais para
mim, e seu itinerário me desviaria de meu caminho. Lembrei-me, porém, de
meu desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo.
Quando eu lhe disse que sim, seu tom de imploração imediatamente cessou,
substituído por uma voz extremamente prática: “É, mas espere um pouco, vou
até aquela transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que
deixei lá para não molhar”. “Estará ela se aproveitando de mim?”, indaguei-me
na velha dúvida se devo ou não deixar que se aproveitem de mim. Terminei
cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou com um enorme embrulho pousado
nas mãos estendidas, como se até seu próprio corpo pudesse macular o
vestido. Instalou-se totalmente, o que me deixou tímida na minha própria casa.
E começou o meu calvário de anjo - pois a mulher, com sua voz
autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos
comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu,
o vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu
já tivera as minhas premières, e nem as minhas me haviam comovido. “A
senhora não sabe o milagre que me aconteceu”, contou-me com firmeza.
“Comecei a rezar na rua, a rezar ara que Deus me mandasse um anjo que me
salvasse, fiz promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou
a senhora.” Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a
proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a
força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava
impositivamente a reconhecer o anjo em mim, o que só pouquíssimas pessoas
até hoje reconheceram, e sempre com a maior discrição. Tentei sem jeito a
leveza de um sarcasmo: “Não me supervalorize, sou apenas um meio de
transporte”. Enquanto que a ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a
contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos
também são meios de transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito
impressionada com quem grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente
mandava em mim. Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce
cinismo: aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase, devia
ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por
agradecer ao anjo com um cheque, também levando em conta que a chuva já
devia ter lavado toda a minha distinção. Com um pouco mais de confortável
cinismo, em silêncio, declarei-lhe que dinheiro seria um meio tão legítimo como
qualquer outro de agradecer, já que a moeda dela era mesmo moeda. Ou
então - diverti-me eu - bem poderia dar-me em agradecimento o vestido da
première, pois o que ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido
seco, e sim ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo
cada vez melhor, pensei: “Cada um tem o anjo que merece, veja que anjo lhe
coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que nem sequer vi.
Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar com a idéia de um anjo
interessado em roupas”. Parece-me que, no meu orgulho, eu não queria ter
sido escolhida para servir de anjo à tolice ardente de uma senhora.
A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem
esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante
algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender
como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A
menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe,
até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora
começava a me deixar sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de
minha natureza indecisa uma profissão definida, transformara minha
espontaneidade em dever, acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa
altura eu já não podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só
fora mandada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o que
eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que caía em si. Caí
em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito àquela de quem eu era
com tanta revolta o anjo da guarda: faça o obséquio de descer já e
imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada, agüentando o peso de minhas
asas cada vez mais contritas pelo seu enorme embrulho. Ela, a minha
protegida, continuava a falar bem de mim, ou melhor, de minha função.
Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na altura de
Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre nós.
- Escute, disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de
dois gumes também para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e
depois é que segue com a senhora.
- Mas, disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois vou ter
que dar uma volta enorme e vou me atrasar! é só um pequeno desvio para me
deixar em casa!
- Pois é, respondi seca. Mas não posso entrar pelo desvio.
- Eu pago tudo! insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se
lembrado de me agradecer.
- Eu é que pago tudo, insultei-a.
Ao saltar do táxi, assim como quem não quer nada, tive o cuidado de
esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de
educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a
grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando
pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde
de Pelotas.
In Para Não Esquecer.
São Paulo, Ática, 1984
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Mas há a vida
Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a ultima gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Mas já que se há escrever...
Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com
palavras as entrelinhas.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Menino a bico de pena
Um menino, que ainda não fala nem anda direito, está sentado no chão.
Tenta dar alguns passos, cai; engatinha, baba. Depois a mãe o toma no colo, o
faz dormir, troca a fralda dele e o ouve dar os primeiros sinais da fala.
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Mentir, pensar
O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como
parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei
dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo
certo", imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava tentando
pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então
este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é
a mentira "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a
pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Meu Deus, me dê coragem...
Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios da tua presença
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude
Faça com que eu seja a tua amante humilde
entrelaçada a ti em êxtase
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala
Faça com que eu tenha a coragem de te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo
Faça com que a solidão não me destrua
Faça com que minha solidão
me sirva de companhia
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir como se estivesse
plena de tudo
Receba em teus braços o meu pecado de pensar
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Monet
Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na
areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal.
Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o
clássico eu de todo o muno. Beethoven é a emulsão humana em tempestade
procurando o divino e só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço
música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu
vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifónico-paranóico. Escrevo muito
simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me
na fonte seca e na luz fria.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Mude
Mude,
mas comece devagar,
porque a direcção é mais importante
que a velocidade. Sente-se em outra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa. Quando sair,
procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
ande por outras ruas,
calmamente,
observando com atenção
os lugares por onde
você passa. Tome outros ónibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os seus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira
para passear livremente na praia,
ou no parque,
e ouvir o canto dos passarinhos. Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas
e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado da cama...
depois, procure dormir em outras camas. Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais...
leia outros livros,
Viva outros romances. Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo. Aprenda uma palavra nova por dia
numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores,
novas delícias. Tente o novo todo dia.
o novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor.
a nova vida. Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações. Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa. Escolha outro mercado...
outra marca de sabonete,
outro creme dental...
tome banho em novos horários. Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
ame cada vez mais,
de modos diferentes. Troque de bolsa,
de carteira,
de malas,
troque de carro,
compre novos óculos,
escreva outras poesias. Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores. Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas,
outros cabeleireiros,
outros teatros,
visite novos museus. Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
E pense seriamente em arrumar um outro emprego,
uma nova ocupação,
um trabalho mais light,
mais prazeroso,
mais digno,
mais humano. Se você não encontrar razões para ser livre,
invente-as.
Seja criativo. E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez. Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já conhecidas,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda !Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena!!!!
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Não entendo
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto
que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo
como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O
bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter
loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só
que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não
demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Não quero ter
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível
de fazer sentido.
Eu não: Quero é uma verdade inventada.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Não soltar os cavalos
Como em tudo, no escrever também tenho uma espécie de receio de ir
longe demais. Que será isso? Por que? Retenho-me, como se retivesse as
rédeas de um cavalo que pudesse galopar e me levar Deus sabe onde. Eu me
guardo. Por que e para quê? Para o que estou eu me poupando? Eu já tive
clara consciência disso quando uma vez escrevi: "é preciso não ter medo de
criar". Por que o medo? Medo de conhecer os limites de minha capacidade?
Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar? Quem sabe,
assim como uma mulher que se guarda intocada para dar-se um dia ao amor,
talvez eu queira morrer toda inteira para que Deus me tenha toda.
in "Para não esquecer" - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Nasci dura
Nasci dura, heróica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na
paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiúra é o meu estandarte de guerra.
Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu - eu sou
a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim
procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das
pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com
duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a
minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de
minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Noite de Fevereiro
Juro, acredita em mim - a sala de visitas estava escura - mas a música
chamou para o centro da sala - a sala se escureceu toda dentro da escuridão -
eu estava nas trevas - senti que por mais escura a sala era clara - agasalheime
no medo - como já me agasalhei de ti em ti mesmo - que foi que encontrei?
- nada senão que a sala escura enchia-se da claridade que se adivinha no mais
escuro - e que eu tremia no centro dessa difícil luz - acredita em mim embora
eu não possa explicar - houve alguma coisa perfeita e graciosa - como se eu
nunca tivesse visto uma flor - ou como se eu fosse a flor - e houvesse uma
abelha - uma abelha gelada de pavor - diante da irrespirável graça dessa luz
das trevas que é uma flor - e a flor estava gelada de pavor diante da abelha
que era muito doce - acredita em mim que também não creio - que também
não sei o que poderia uma abelha viva de pavor querer na escura vida de uma
flor - mas crê em mim - a sala estava cheia de um sorriso penetrante - um rito
fatal se cumpria - e o que se chama de pavor não é pavor - é a brancura
subindo das trevas - não ficou nenhuma prova - nada te posso garantir - eu sou
a única prova de mim.
in "Para não esquecer" - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O amor e o grito
Um dia um mestre perguntou aos seus discípulos:
- Por que as pessoas gritam quando estão aborrecidas?
Os homens pensaram por alguns momentos.
- Porque perdemos a calma - disse um deles. - Por isso gritamos.
- Mas, por que gritar quando a outra pessoa está ao teu lado? Não é
possível falar-lhe em voz baixa? Por que gritas a uma pessoa quando estás
aborrecido?
Os homens deram algumas respostas, mas nenhuma delas satisfez o
mestre. Finalmente ele explicou:
- Quando duas pessoas estão aborrecidas, seus corações se afastam
muito. Para cobrir esta distância precisam gritar para poder escutar-se.
Quanto mais aborrecidas estejam, mais forte terão que gritar para se
escutar um ao outro através desta grande distância.
Em seguida perguntou:
- O que sucede quando duas pessoas se enamoram? Elas não gritam,
mas se falam suavemente. Por quê? Porque seus corações estão muito perto.
A distância entre elas é pequena. Quando se enamoram, acontece mais
alguma coisa? Notem que quase não falam, somente sussurram, e ficam cada
vez mais perto do seu amor. Finalmente, não necessitam sequer sussurrar,
somente se olham e isto é tudo. Assim é quando duas pessoas que se amam
estão próximas.
Portanto, quando discutirem, não deixem que seus corações se afastem,
não digam palavras que os distanciem mais. Chegará um dia em que a
distância será tanta que não mais encontrarão o caminho de volta.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O búfalo
Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois
animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente
lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão
passeou enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas
estendidas a cabeça de uma esfinge. “Mas isso é amor, é amor de novo”,
revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era
primavera e dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do
casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas
fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura
que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na
frescura de uma cova.
Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola
inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom
desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir — diante da aérea girafa
pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas — sem conseguir
encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o
ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante
da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que
se distraíra em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros
animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo
úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne
roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne,
tal doce martírio em não saber pensar.
Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria
aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas,
macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e a
outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os
dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O
mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um
macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos
em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela
mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos
que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os
olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos
a doçura da doença, era um macaco velho — a mulher desviou o rosto,
trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou
os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos:
ele continuava a olhar para a frente. “Oh não, não isso”, pensou. E enquanto
fugia, disse: “Deus, me ensine somente a odiar.”
“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não
amá-la. “Eu te odeio”, disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se
fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem
na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre
mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante
inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não
esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a
um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos
dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera
oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.
A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda,
mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se
sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados
do camelo sobre olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato
interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na
primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não
correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro
de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a
lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete
velho onde sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer
percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera
buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas
não o camelo de estopa. “Oh Deus, quem será meu par neste mundo?”
Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do
Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se
sentar no carro da montanha-russa.
E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda
parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no
seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. Os olhos baixos viam o chão
entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor — amor, amor, não o
amor! — onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve
tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepioulhe
os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando,
sempre tão mais fácil amar.
Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração
que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a
precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia
levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo
automaticamente alegre — o grito das namoradas! — seu olhar ferido pela
grande surpresa, a ofensa, “faziam dela o que queriam”, a grande ofensa — o
grito das namoradas! — a enorme perplexidade de estar espasmodicamente
brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta.
Quantos minutos? os minutos de um grito prolongado de trem na curva, e a
alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela
dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não
quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensação de morte às
gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta,
não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o
grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve
espanto.
E agora este silêncio também súbito. Estavam de volta à terra, a
maquinaria de novo inteiramente parada.
Pálida, jogada fora de uma Igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e
aonde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para
ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que
tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na
bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida
íntima de precauções: pó de arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo no
meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se
estivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse
atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que
estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu
lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava
por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a
mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil:
sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse
engolido o vácuo, o coração surpreendido.
Só isso? Só isto. Da violência, só isto.
Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanharussa
deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa
na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o
quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o
quati que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os
olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como
uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua
missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe
pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.
A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu
vir da sola dos pés. Depois outro gemido.
Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a
vontade de matar — seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase
felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada
de ódio como um desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento
como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a
fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde
encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe
pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a
odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o
mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham
mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse
arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se
fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez,
uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida — deu um gemido áspero e
curto, o quati sobressaltou-se — enjaulada olhou em torno de si, e como não
era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha
assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.
Recomeçou então a andar, agora apquenada, dura, os punhos de novo
fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito.
No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir
perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só
aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse
o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem
pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito
destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma
fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos
tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não
passava de uma delicada. Mas, pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a
alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de
novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no
enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar
a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível
entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido buscar
na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do
modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro
gelado.
Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua própria escuridão nada
viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a
enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada
pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as
árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem
esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou
olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem
interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.
Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de
pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele
grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo
negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os
quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as
ilhargas contraídas. Visto de frente, a grande cabeça mais larga que o corpo
impedia a visão do resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça
os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro.
Tão preto que à distancia a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura
erguida dos cornos.
A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.
E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os
cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um
instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do
corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque das trevas da
cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou
sentido.
A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em
desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.
E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.
Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou
subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o
coração batia oco entre o estômago e os intestinos.
O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o
rosto todo doeu um pouco.
O búfalo com o torso preto. No entardecer luminoso era um corpo
enegrecido de tranqüila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca
espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como
uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo
trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não
sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca
e remota onde estivera.
E de onde olhou de novo o búfalo.
O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor.
O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não
sabia como chamá-lo. Ah! disse provocando-o. Ah! disse ela. Seu rosto estava
coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e
veneração. Ah! instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o
búfalo inteiramente imóvel.
Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A
imobilidade do torso, mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.
Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro
dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.
Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro
fio de sangue negro.
O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue
se tivesse contraído o mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como numa grota
aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava
presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim
incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca.
Então o búfalo voltou-se para ela.
O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e à distância encarou-a.
Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime
impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.
Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.
Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços
pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um
só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a
mulher, frente à frente. Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos.
Olhou seus olhos.
E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão
funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono
profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A
mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo.
Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o
búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça
incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo
dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de
sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se
sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara.
Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta
vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um
búfalo.

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