domingo, 11 de julho de 2010

Os obedientes

Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Os obedientes
Um casal viveu muitos anos junto. Sua harmonia conjugal era
aparentemente perfeita. Mas não tinham emoções. Cumpriam com perfeição a
rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de
um casal, inclusive quanto à fidelidade.
Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de
inconveniente.
Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns
sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar: ele
imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro
homem a salvaria.
Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente
da frente.
Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade,
com um dente quebrado, e os próprios olhos...” Então, jogou-se pela janela.
O marido continuou existindo; “seco inesperadamente o leito do rio,
andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair
de bruços mais adiante.”
In “Felicidade clandestina”
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Perdoando Deus
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios,
nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na
verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava
sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui
percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se
intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu
me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo,
sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou
igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo
isso “fosse mesmo” o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de
sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria
acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a
intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas
muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que
se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e
reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim
como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do
mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um
segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo
estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo,
de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a
andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os
dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a
contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantavame
que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me
tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava
Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que
dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu
o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim
a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não
era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante.
Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina
e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me
devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem
pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a
me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era
bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável
como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer.
Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus
Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me
esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança
nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais
estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva
essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim
é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não
guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de
Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por
carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou
contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por
isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha
pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava
mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava
que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as
incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido
carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem
compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em
oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é
brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não
sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É
porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não
é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que
me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito
possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria
o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar
um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha
pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o
que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o
formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é
pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo
que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto
quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós
mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais
nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache
delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive
os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o
rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida.
Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de
tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho
de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou
ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu,
que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu
contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me
habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse.
Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou
tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim
mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um
Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida
maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Por não estarem distraídos...
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando
se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de
boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter
esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo,
falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a
alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se
tocavam, e ao toque — a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de
escuras — e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco
mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles
quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O
cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que
ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo
errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com
aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção,
só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e
duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome;
porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se
estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta
chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os
fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Prece
Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à
minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já
estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a
entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria
modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta
seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que
também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no
entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o
mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu
mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse
mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós
enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão
que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim
mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu
perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana
amada para apertar a minha, amém.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Precisão
O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fracção de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exactidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exactidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
“Precisa-se”
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e
oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou
mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente
que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se
extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É
urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até
parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da
noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica
tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que
passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste
porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se
transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a
humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com
todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor
da copa e da cozinha, e da sala de estar.
P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num
anúncio a dilarecerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma
alegria até mesmo divina para dar.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Restos do Carnaval
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou
para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde
esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um
véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia
que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia
se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o
mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as
ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como
se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta
em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um
baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me
ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde
morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu
ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um
lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever.
Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me
agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada
já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário
porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto
humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de
escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato
indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e
príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com
os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,
ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma
de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam
tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos
durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu
sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma
infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando
também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu
escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não
conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir
pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome
da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel
crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de
uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e
se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu
pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel
crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo
apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que
sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o
que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu
teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira
tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo
da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se
derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à idéia de uma
chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito
anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah!
Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir
por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que
sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que
ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos
enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não
passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde:
com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei.
No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge -
minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em
casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo
vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que
cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa,
atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros
me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me
penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas
histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam
pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma
simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um
palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às
vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave
de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é
porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim
significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa
mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos
já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem
falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que
enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
in "Felicidade Clandestina"
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Rifa-se um coração
Um coração idealista.
Um coração como poucos,
Um coração a moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar
peças em seu usuário.
Rifa-se um coração que na verdade está
um pouco usado,
meio calejado, muito machucado,
e que teima em cultivar sonhos e alimentar ilusões.
Um pouco inconseqüente e que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração que acha que
Tim Maia estava certo quando escreveu e
tão bem cantou...
“...NÃO QUERO DINHEIRO, QUERO AMOR SINCERO, É ISSO QUE EU
ESPERO...”
Um idealista, um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende,
que não endurece e mantém sempre viva a
esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato,
que comanda o racional sendo louco
o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando relações
e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer
sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra que briga, se expõe
Perde o juízo por completo em nome
de causas e paixões.
Sai do sério e as vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este mesmo coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional que
abre sorrisos tão largos
que quase dá para engolir as orelhas,
mas que também arranca lagrimas e faz
murchar meu rosto.
Um coração para ser alugado ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado, apenas indicado para quem
quer viver intensamente,
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra
sem armaduras e deixa louco seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer a São Pedro:
- “O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi
este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer.”
“Rifa-se um coração,
ou mesmo troca-se por outro que tenha um
pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser
que o abriga tão carinhosamente.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que
ainda não foi adotado,
provavelmente, por ainda se recusar a cultivar
ares selvagens ou racionais,
por não querer perder seu estilo e sua
verdadeira identidade.
Oferece-se um coração vadio, sem raça,
sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos,
que mesmo estando no mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário
a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Saudade
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se
absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma
unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Se tudo existe é porque sou
Se tudo existe é porque sou. Mas por que esse mal estar? É porque não
estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei
qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas
alguma coisa está errada e dá mal estar. No entanto estou sendo franca e meu
jogo é limpo. Abro o jogo. Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por
natureza. O que há então? Só sei que não quero a impostura. Recuso-me. Eu
me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Silêncio
É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se
em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou
inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável
dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se
afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo.
Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio
sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem
fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a
possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra
e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o
vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo
embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma
continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode
falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se
diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas
com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem,
fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já
vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as
folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça
com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito
atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que
passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio.
Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no
começo o silêncio parece aguardar uma resposta - como ardemos por ser
chamados a responder - cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez
apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o
silêncio te julga - como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem
as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a
indignidade. Tão suave é para os ter humano enfim mostrar sua indignidade e
ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de
nascença.
Até que se descobre - nem a sua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro de
cabeceira cair no chão. Mas, horror - o livro cai dentro do silêncio e se perde na
muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse?
Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.
Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele,
nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se
espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se
estivéssimos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar
num navio. e este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais
do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é
vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho
de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se
apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente
nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é
comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno
silêncio.
Se não há coragem, que não se entre. que se espere o resto da escuridão
diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de
dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro,
duas coisas que não se vêem na escuridão. Que se espere. Não o fim do
silêncio, mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois
quando menos se espera pode-se reconhecê-lo - de repente. Ao atravessar a
rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e
outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os
ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia - ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Sobre a escrita...
Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina
é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A
palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com
elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que
atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra
materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de
pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro
dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é
identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo
- é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei
porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente
uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto
não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa
palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca
fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a
eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma
fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o
som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra
falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos
elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.
Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao
mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou
simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas
coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor
acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto
essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de
um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.
Texto extraído do site "Sobrado".
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Solidão
Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Sonhe
Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância
das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Talvez assim seja
Por outro lado, estou hoje um pouco cansada e é sobre o prazer do
cansaço dolorido que vou falar. Todo prazer intenso toca no limiar da dor. Isso
é bom. O sono, quando vem, é como um leve desmaio, um desmaio de amor.
Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o
sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem
morre às vezes precisa muito.
Será que morrer é o último prazer terreno?
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Tempestade de almas
Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha
da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente.
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas
em lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto. Inútil enquanto a
olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse
germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida. Nada
mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhes
contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo
cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante
mortal. O objeto cadeira sempre me interessou. Olho esta que é antiga,
comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior
simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho. Amo os
objetos à medida que eles não me amam. Mas se não compreendo o que
escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho
uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amordaçaram a boca. O que é
que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?" Se desse a loucura da
franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma
pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja
determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem
no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do
mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta
tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não
vejo nem sinto. A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a
condição humana que é cercada de música. Aliás, música é uma abstração do
pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Só posso escrever se
estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo império e
dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto. O futuro é meu
enquanto eu viver. No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada
escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marli de Oliveira, eu não
escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as
circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada. Tudo o que nunca se
fez, far-se-á um dia? O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é
humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o
humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra: são flores do campo,
nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse:
mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é
espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que
é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana. Quantas mentiras
sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a
mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas,
e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo. A Lua é,
como diria Paul Éluard, éclatante de silence. Hoje não sei se vamos ter Lua
visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu. Uma vez eu olhei de noite
para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de
tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo. Não há
lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da
natureza. Da natureza humana também. O que seria do mundo, do cosmos, se
o homem não existisse. Se eu pudesse escrever sempre assim como estou
escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa
brainstorm. Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo.
Inventou então um maior conforto para o seu corpo. Depois os séculos se
seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira,
pois usá-la é apenas automático. É preciso ter coragem para fazer um
brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar. O monstro sagrado
morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha. Bem sei que terei
de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e
sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Tentação
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas
horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina
flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua,
só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não
bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a
momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer
de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra
desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser
ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava
sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era
uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor
conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em
Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina
acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset
lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro
ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele
fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria.
Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem
sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se
comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem
falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução
para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos
cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora
carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do
Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à
gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria
quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal
despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o
acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe
compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam,
debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
in "Felicidade Clandestina"
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Teu segredo
Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar.
Que riqueza de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então
o teu segredo. Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do
que já sei. E sei tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o
meu.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Trabalho humano
Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida: para compreender
minha não inteligência fui obrigada a tornar-me inteligente. (Usa-se a
inteligência para entender a não inteligência. Só que depois o instrumento
continua a ser usado - e não podemos colher as coisas de mãos limpas.)
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Um caso complicado
Pois é.
Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, amante da mulher do
médico que tratava da filha, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam e a
mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o
amante podia entrar ou era toalha de cor e ele não entrava.
Mas estou me confundindo toda ou é o caso de tão enrolado que se puder
vou desenrolar. As realidades dele são inventadas. Peço desculpa porque além
de contar os fatos eu também adivinho e o que adivinho aqui escrevo. Eu
adivinho a realidade. Mas esta história não é de minha seara. É da safra de
quem pode mais que eu.
Pois a filha teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa
Jandira de 17 anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava
noiva. Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não viu
que era patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente
desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria. Todos,
inclusive a mãe sofrida da moça, imploraram ao noivo que fingisse ainda amála,
o que - diziam-lhe - não era tão penoso porque seria a curto prazo: é que a
noiva tinha vida a curto prazo.
E daí a três meses - como se cumprisse promessa de não pesar nas
débeis idéias do noivo - daí a três meses morreu, linda, de cabelos belos,
inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança
tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não, não sei
como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei, quem sabe se não
tão escura. A morte, quero dizer.
O noivo que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece
morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com
esta continuou, pouco ligando.
Bem. Essa mulher lá um dia teve ciúmes. E - tão requintada como Nelson
Rodrigues que não negligencia detalhes cruéis. Mas onde estava eu, que me
perdi? Só começando tudo de novo, e em outra linha e parágrafo para melhor
começar.
Bem. A mulher teve ciúmes e enquanto o Bastos dormia despejou água
fervendo do bico da chaleira dentro do ouvido dele que só teve tempo de dar
um urro antes de desmaiar, urro esse que podemos adivinhar, era o pior grito
que tinha. Bastos foi levado para o hospital e ficou entre vida e morte, esta em
luta feroz com aquela.
A virago ciumenta pegou um ano e pouco de cadeia. De onde saiu para
encontrar-se - adivinhem com quem? pois foi encontrar-se com o Bastos. A
essa altura um Bastos muito mirrado e, é claro, surdo para sempre, logo ele
que não perdoara defeito físico.
O que aconteceu? Pois voltaram a viver juntos, amor para sempre.
Enquanto isso a menina de 17 anos morta há muito tempo, só deixando
vestígios na mãe. E se me lembrei fora de hora da mocinha é pelo amor que
sinto.
Aí é que entra o pai dela, como quem não quer nada. Continuou sendo
amante da mulher do médico que tratara de sua filha com devoção. Filha,
quero dizer, do amante. E todos sabiam, o médico e a mãe da ex-noiva. Acho
que me perdi de novo, está confuso, mas que posso fazer?
O médico mesmo sabendo ser o pai da mocinha amante de sua mulher
cuidara muito da noivinha espaventada demais com o escuro de que falei. A
mulher do pai, portanto mãe da ex-noivinha, sabia das elegâncias adulterinas
do marido que usava relógio de ouro e anel que era jóia, alfinete de gravata de
brilhante, negociante abastado, como se diz, pois as gentes respeitam e
cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, está certo? Ele, o pai da
moça, vestido com terno verde e camisa cor-de-rosa de listrinhas. Como é que
eu sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com a adivinhação
imaginadora. Eu sei, e pronto.
Não posso esquecer de um detalhe. É o seguinte: o amante tinha na
frente um dentinho de ouro. E cheirava a alho, toda sua aura era puro alho, e a
amante nem ligava, queria era ter amante, com ou sem cheiro de comida.
Como é que eu sei? Ora, sabendo.
Não sei que fim levaram essas pessoas, não soube mais notícias.
Desagregaram-se? pois é história antiga, e talvez tenha já havido mortes entre
elas, as pessoas.
Acrescento um dado importante e que, não sei por que, explica o
nascedouro maldito da história toda: esta se passou em Niterói, com as tábuas
do cais sempre úmidas e escuras e suas barcas de vai-vém. Niterói é lugar
misterioso e tem casas velhas, enegrecidas. E lá pode acontecer água
fervendo no ouvido do amante? Não sei.
O que fazer desta história? Também não sei, dou-a de presente a quem
quiser, pois estou enjoada dela. Demais até. Às vezes me dá enjôo de gente.
Depois passa e fico de novo curiosa e atenta.
E só.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma amizade sincera
Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no
último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora.
Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não
confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não
podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro,
marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes
como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de
comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada
tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que
o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência
de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós.
Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer.
Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou
a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já
estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas
namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de
seu amores. Experimentávamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos
logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a
ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a
sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio.
Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza
revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si
mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele
morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar
em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma.
Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente
perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de
braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades
estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos
até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e
com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos
espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa
amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer
desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os
vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia
oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não
precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos
amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser
uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do
outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos
sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um
para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que
nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo
teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós
a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade
de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de
minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase
de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não
houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados:
contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não
aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse
o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam,
por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe
afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás,
nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro
àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar
também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito de passagem, com
vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra
que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a
alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também
ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto.
Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que
não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos
sinceros.
In Felicidade Clandestina.
Rio de Janeiro, Rocco, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma esperança
Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes
verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a
outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção
dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso.
Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar
diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa
parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e
verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa
para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os
quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros,
três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na
Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar
devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um
modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um
quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha. Andando
pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a
esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que
comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem
saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com
ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei
sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz.
Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a
empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da
esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa
esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer.
Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho
verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de
pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que
esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só
visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a
delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?”
Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse
nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que
não aconteceu nada.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Uma galinha
Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove
horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não
olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram,
apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou
magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o
peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante
ainda vacilou - o tempo da cozinheira dar um grito - e em breve estava no
terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá
ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.
A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de
uma chaminé. O dono da casa lembrando-se da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar vestiu radiante um calção de
banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o
telhado onde esta hesitante e trêmula escolhia com urgência outro rumo.
A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido
mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida
a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum
auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido.
E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda,
concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e
enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por
um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um
ser.
Ë verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que
havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão
igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz
alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em
triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com
certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e
indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida
que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se
sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu
coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de
tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e
assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do
acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos:
- Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o
nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem
parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem
alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem
propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça
de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
- Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na
minha vida!
- Eu também! jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com
a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper
a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer
que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa.
Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos,
usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido,
enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga - e circulava
pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo,
embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho
susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha
que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses
momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às
fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem
nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no
descanso, quando deu à luz ou bicando milho - era uma cabeça de galinha, a
mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se

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