domingo, 11 de julho de 2010

Os desastres de Sofia

Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Os desastres de Sofia
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara,
mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era
tudo o que sabíamos dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de
ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava
paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz
grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu
silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que,
ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto,
mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia,
vermelho:
- Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não
mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se
tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo
modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o
como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a
cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão
curvos. Ele me irritava. De noite, antes de dormir, ele me irritava.
Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não quebrado de
uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em
glória de martírio, a acidez insuportável da begônia quando ê esmagada entre
os dentes; e roia as unhas, exultante. De manhã, ao atravessar os portões da
escola, pura como ia com meu café com leite e a cara lavada, era um choque
deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por um
abismal minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto
apenas, mas em profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De
manhã - como se eu não tivesse contado com a existência real daquele que
desencadeara meus negros sonhos de amor - de manhã, diante do homem
grande com seu paletó curto, em choque eu era jogada na vergonha, na
perplexidade e na assustadora esperança. A esperança era o meu pecado
maior.
Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação
daquele homem. Eu queria o seu bem, e em resposta ele me odiava.
Contundida, eu me tornara o seu demônio e tormento, símbolo do inferno que
devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de desinteressados. Tornarase
um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo, como sempre, me
fascinava. Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma
sabedoria com que os ruins já nascem - aqueles ruins que roem as unhas de
espanto -, sem saber que obedecia a uma das coisas que mais acontecem no
mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso.
As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e
se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter
dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é
feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu
enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas
posso contar - uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer
desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras. Assim, pois, não falarei
mais no sorvedouro que havia em mim enquanto eu devaneava antes de
adormecer. Senão eu mesma terminarei pensando que era apenas essa macia
voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha desesperada
abnegação. Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera.
Era de se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradas a tarefa de
salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e crianças daquele tempo eu
era provavelmente a menos indicada. “Essa não é flor que se cheire”, como
dizia nossa empregada. Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado
pelo terror do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão
tentar ajudá-lo a descer. O professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a
mais imprudente quem ficara sozinha com ele nos seus ermos. Por mais
arriscado que fosse o meu lado, eu era obrigada a arrastá-lo para o meu lado,
pois o dele era mortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa
um grande pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, não perguntava o que
eu queria, e livrava-se de mim com um safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo
paletó, meu único instrumento era a insistência. E disso tudo ele só percebia
que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao certo o
que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu
papel era ruim e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida, vida real que
tardava, e pior que inábil, eu também tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só
Deus perdoaria o que eu era porque só Ele sabia do que me fizera e para o
quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d'Ele. Ser matéria de Deus era a minha
única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele,
mas pela matéria d'Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma
adoradora. Aceitava a vastidão do que eu não conhecia e a ela me confiava
toda, com segredos de confessionário. Seria para as escuridões da ignorância
que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira alegre
e monstruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe
todos nós éramos igualmente monstruosos e suaves, ávida matéria de Deus.
Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu paletozinho
apertado, minhas gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo a
que custo me esquecer, mais contraído ficasse de tanto autocontrole. A
antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu me detestava.
Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza
impossível.
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me
tomara demais. Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas
compridas e os sapatos sempre cambaios, humilhada por não ser uma flor, e
sobretudo torturada por uma infância enorme que eu temia nunca chegar a um
fim - mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minha única riqueza: os
cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e
que por conta do futuro eu já exercitava sacudindo-os. Estudar eu não
estudava, confiava na minha vadiação sempre bem sucedida e que também ela
o professor tomava como mais uma provocação da menina odiosa. Nisso ele
não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As
alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de
história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus
primeiros êxtases de tristeza, refinamento que eu já descobrira; havia meninos
que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia horas de
sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento
aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a
esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem
falar que estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que
eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido
era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o professor que eu não
estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com
uma falta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cálculo: as
pernas não combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as
mãos se esgalhavam sujas - na minha pressa eu crescia sem saber para onde.
O fato de um retrato da época me revelar, ao contrário, uma menina bem
plantada, selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja pesada,
esse retrato real não me desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica
estranha que eu não compreenderia se fosse a sua mãe. Só muito depois,
tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me fundamentalmente
mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu não
podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar - tomava intuitivo
cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade
cultivava a integridade da ignorância. Foi pena o professor não ter chegado a
ver aquilo em que quatro anos depois inesperadamente eu me tornaria: aos
treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me
teria visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez
dele, passara embaixo um ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem
perceber que eu já não era mais um moleque e sim uma jovem digna cujo
nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que é?”,
indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a
notícia de que o professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos
muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura
quebrada como a de uma boneca partida.
Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado
e em conjunto, que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de
desenlace dessa história e começo de outras. Ou foi apenas por pressa de
acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no parque.
- Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas
usando as palavras de vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela
sineta, já pode ir para o recreio.
O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um
tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do
tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar o tesouro; cansado,
voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer,
começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto
começara a vender que terminara ficando muito rico.
Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como
se quisesse deixar claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem
sabia quem ele era. Ele contara sem olhar uma só vez para mim. É que na falta
de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também o acossava com o
olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar direto, do qual
ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava
bem límpido e angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E
conseguia sempre o mesmo resultado: com perturbação ele evitava meus
olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de um poder que me
amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava-me que ele
obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio.
Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o
maior campo de recreio que já vi. Era tão bonito para mim como seria para um
esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e
estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para
pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de
origem ignorada, para moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol
e sombras onde as abelhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo
fora vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive, intensamente
cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos
os troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações
transpassados por flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel.
Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidas já
me chamava. Apressei-me. Como eu só sabia “usar minhas próprias palavras”,
escrever era simples. Apressava-me também o desejo de ser a primeira a
atravessar a sala - o professor terminara por me isolar em quarentena na última
carteira - e entregar-lhe insolente a composição, demonstrando-lhe assim
minha rapidez, qualidade que me parecia essencial para se viver e que, eu
tinha certeza, o professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me olhar.
Melindrada, sem um elogio pela minha velocidade, saí pulando para o grande
parque.
A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à
que ele contara. Só que naquela época eu estava começando a “tirar a moral
das histórias”, o que, se me santificava, mais tarde ameaçaria sufocar-me em
rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescentado as frases finais. Frases
que horas depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a
ponto de enfim ter provocado o homem de um modo como eu própria não
conseguira até então. Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito
na sua história triste é que o trabalho árduo era o único modo de se chegar a
ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa
sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só
descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro,
não sei se foi exatamente isso. Não consigo imaginar com que palavras de
criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento
complicado. Suponho que, arbitrariamente contrariando o sentido real da
história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o
trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu
aspirava. É possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável
esperança, e que eu já tivesse iniciado a minha grande obstinação: eu daria
tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. Ao
contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros
todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a
primeira, ciscando a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a
pouco começaram a surgir da sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não
me lembro o quê, para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor.
Toda molhada de suor, vermelha de uma felicidade irrepresável que se fosse
em casa me valeria uns tapas - voei em direção à sala de aula, atravessei-a
correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cadernos
empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e
iniciando outra corrida de volta - só então meu olhar tropeçou no homem.
Sozinho à cátedra: ele me olhava.
Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me
olhava. Meus passos, de vagarosos, quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da
classe, sem a admiração que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo
que o sangue me sumia do rosto. Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele
me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre mim. Mas se a pata
era suave, tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prende o rabo do
rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca, dividindo ao meio o
meu sorriso. Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava.
Comecei a costear a parede de olhos baixos, prendendo-me toda a meu
sorriso, único traço de um rosto que já perdera os contornos. Nunca havia
percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do
medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara
perceber até então como eram austeras e altas as paredes; e duras, eu sentia
a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu
mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta - de onde eu correria, ah como
correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. Além de me
concentrar no sorriso, meu zelo minucioso era o de não fazer barulho com os
pés, e assim eu aderia à natureza íntima de um perigo do qual tudo o mais eu
desconhecia. Foi num arrepio que me adivinhei de repente como num espelho:
uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta dos
pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala
em silêncio, e mesmo os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de
fora do silêncio. Cheguei finalmente à porta, e o coração imprudente pôs-se a
bater alto demais sob o risco de acordar o gigantesco mundo que dormia.
Foi quando ouvi meu nome.
De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele
sem coragem de me voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o
suor do corpo. Virei-me devagar, contendo dentro dos punhos cerrados o
impulso de correr.
Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.
E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor
era muito grande e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e
grande medo. Pequena, sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha
fatal liberdade finalmente me levara. Meu sorriso, tudo o que sobrara de um
rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos no chão e um coração
que de tão vazio parecia morrer de sede. Ali fiquei, fora do alcance do homem.
Meu coração morria de sede, sim: Meu coração morria de sede.
Calmo como antes de friamente matar ele disse:
- Chegue mais perto . . .
Como é que um homem se vingava?
Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe
jogara e que nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade
que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim
lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte de compacta tristeza, era
também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um
arrependimento estóico manteve erecta a minha cabeça. Pela primeira vez a
ignorância, que até então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai
estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único eu.
- ... Pegue o seu caderno ..., acrescentou ele.
A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!? O alívio
inesperado foi quase mais chocante que o meu susto anterior. Avancei um
passo, estendi a mão gaguejante.
Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os
óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha
visto seus olhos que, com as inúmeras pestanas, pareciam duas baratas
doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem.
Disfarcei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda
estendida porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso,
com os olhos despenteados como se tivesse acordado. Iria ele me amassar
com mão inesperada? Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse perdão. Meu
fio de esperança era que ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim
como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.
- Como é que lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
- Que tesouro? - murmurei atoleimada.
Ficamos nos fitando em silêncio.
- Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa
por admitir qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas
em sofrer para sempre de culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição,
mas nunca essa vida desconhecida.
- O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só
descobrir. Quem lhe disse isso?
O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo
tudo? Atônita, sem compreender, e caminhando de inesperado a inesperado,
pressenti no entanto um terreno menos perigoso. Nas minhas corridas eu
aprendera a me levantar das quedas mesmo quando mancava, e me refiz logo:
“foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu erro!” Fraca, e
embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no entanto já
me levantara o bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da
antiga arrogância, a futura cabeleira ondulada:
- Ninguém, ora ..., respondi mancando. Eu mesma inventei, disse trêmula,
mas já recomeçando a cintilar.
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar,
começava no entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva
nele. Olhei-o intrigada, de viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de
raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças novas que eu não
compreendia. Aquele olhar que não me desfitava - e sem cólera ... Perplexa, e
a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida. Que
é que ele queria de mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva passara a
me importunar mais do que a brutalidade que eu temera. Um medo pequeno,
todo frio e suado, foi me tomando. Devagar, para ele não perceber, recuei as
costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até não
ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente
olhei-o.
E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada,
prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi.
Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo
que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de
intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara - o mal-estar já petrificado
subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e
quebrando uma crosta - mas essa coisa que em muda catástrofe se
desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se
um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não
sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da
fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me
olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um
olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas.
Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do
homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola
arrancada da barriga aberta - que estava sorrindo. Eu vi um homem com
entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de
aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto.
Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e
de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas
costas forçaram desesperadamente a parede, recuei - era cedo demais para eu
ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era
tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte
lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo ... Ver a esperança me
aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo demais
de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque
eu era forte. “Mas e eu?”, gritei dez anos depois por motivos de amor perdido,
“quem virá jamais à minha fraqueza!” Eu o olhava surpreendida, e para sempre
não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
- Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só
descobrir. Você ... - ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me
suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele fosse o meu coração. - Você é
uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os olhos, sem poder
sustentar o olhar indefeso daquele homem a quem eu enganara.
Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele de algum
modo havia confiado em mim, e que então eu o enganara com a lorota do
tesouro. Naquele tempo eu pensava que tudo o que se inventa é mentira, e
somente a consciência atormentada do pecado me redimia do vício. Abaixei os
olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta
contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez
terminasse um dia me corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que
não só era a minha pior punição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar
minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu bem quis lhe
avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o, desanimei: faltava-me a
coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, as
de meu pai, por exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi
difícil engolir a seco essa alegria que tão irresponsavelmente eu causara! Ele
parecia um mendigo que agradecesse o prato de comida sem perceber que lhe
haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto, agora tão quente
que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo
engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite
aquilo tudo se transformaria em incoercível crise de vômitos que manteria
acesas todas as luzes de minha casa.
- Você - repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse
admitindo com encantamento o que lhe viera por acaso à boca -, você é uma
menina muito engraçada, sabe? Você é uma doidinha ..., disse usando outra
vez o sorriso como um menino que dorme com os sapatos novos. Ele nem ao
menos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixava-me ver a sua
feiúra, que era a sua parte mais inocente.
Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditar em
mim, tive que engolir a piedade por ele, a vergonha por mim, “tolo!”, pudesse
eu lhe gritar, “essa história de tesouro disfarçado foi inventada, é coisa só para
menina!” Eu tinha muita consciência de ser uma criança, o que explicava todos
os meus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer - e aquele
homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em
mim pela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem,
acreditava como eu nas grandes mentiras ...
... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suportei um
instante mais - sem ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca
como se me tivessem quebrado os dentes. Com a mão na boca, horrorizada,
eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda não é aquela que pede, a
prece mais profunda é a que não pede mais - eu corria, eu corria muito
espantada.
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos
adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu
venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem de
mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja
de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por ele
e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu.
Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança
confusa e sem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica
inocência ... Com a mão apertando a boca, eu corria pela poeira do parque.
Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbita do professor,
sofreei exausta a corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no
tronco de uma árvore, respirando alto, respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos
fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado do tronco, os dedos
mecanicamente passando e repassando pelo duro entalhe de um coração com
flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco
mais: estaria ele querendo dizer que ... que eu era um tesouro disfarçado? O
tesouro onde menos se espera... Oh não, não, coitadinho dele, coitado daquele
rei da Criação, de tal modo precisara ... de quê? de que precisara ele? ... que
até eu me transformara em tesouro.
Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a
recuperar o fôlego, e empurrando com raiva o tronco da árvore recomecei a
correr em direção ao fim do mundo.
Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram
se tornando mais vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais.
Talvez por cansaço, mas eu sucumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a
folhagem das árvores se balançava lenta. Eram passos um pouco
deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma
doçura toda estranha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava
sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado
como a de uma virgem anunciada. E de cansaço abaixando àquela suavidade
primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe talvez lembrasse a
de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás.
“Você é uma menina muito engraçada, você é uma doidinha”, dissera ele. Era
como um amor.
Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito
séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em
mim doía nos outros. E, por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já
havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se
rói a vida - só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu
curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu
era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes
alimentando a minha vida inevitável - que podia eu fazer? eu já sabia que eu
era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera
naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a
ninguém - através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a
sua única vantagem: tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o
ruim, ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. Seria fácil demais
querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa
mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera,
com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendi eu
tudo isso? Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um
instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio o mundo - e mesmo
agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo eu vi -
assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu
entendo. O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de
doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé - numa
solidão sem dor, não menor que a das árvores - eu recuperava inteira, a
ignorância e a sua verdade incompreensível. Ali estava eu, a menina esperta
demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos
homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu o
fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar
em mais do que o rei da Criação: fizera de mim a mulher do rei da Criação.
Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu
coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com
mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas
unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos
mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de
fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu
amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi
dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos
de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos, e olharam
intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para
amar e dormir.
... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a
aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para
suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É
que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu coração que
outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de
meu grito.
In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977, p. 11-25
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Os laços de Família
A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação.
A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que
ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro
estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.
- Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.
- Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com
paciência.
Ainda estava sob a impressão da cena meio cómica entre sua mãe e seu
marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os
dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada
momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na
hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra
exemplar e o marido se tornara o bom genro. "Perdoe alguma palavra mal
dita", dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira António não
saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar - perturbado em ser o bom
genro. "Se eu rio, eles pensam que estou louca", pensara Catarina franzindo as
sobrancelhas. "Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha
mais um", acrescentara a mãe, e António aproveitara sua gripe para tossir.
Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se
desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho
daquela mulherzinha grisalha... Foi então que a vontade de rir tornou-se mais
forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus
olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos
- e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada
podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora
estrábica.
- Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos
solavancos do carro. E apesar de António não estar presente, ela usava o
mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma
noite António se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra
de Severina, pois antes do casamento projectava serem sogra e genro
modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornarase
difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não
impedira que... - Catarina olhava-os e ria.
- O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava
monótono.
- Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.
- Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso,
distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal,
perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha.
António, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho,
passara a dar indirectas à sogra, "a proteger uma criança"...
- Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do
carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. - Ah! ah! -
exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a
cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?
Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina
acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava
depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar
a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder:
Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito
esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se
haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais
amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os
dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois
do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar - por que
não chegavam logo à Estação?
- Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.
Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.
- Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.
- Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram
realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os
beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.
Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos
brilhantes.
O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o
espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo
chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde
não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida.
Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o
peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se "mãe
e filha" fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe.
Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a
sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos
outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da
Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias
pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher.
Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de
um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de
passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando
puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se
não esquecera de nada...
- ...não esqueci de nada? perguntou a mãe.
- Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e
ambas se olhavam atónitas - porque se realmente haviam esquecido, agora era
tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava,
novamente a campainha da Estação soou... Mamãe, disse a mulher. Que coisa
tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe
que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter
respondido: e eu sou tua filha.
- Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
- Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se
preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trémula,
arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente
vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:
- Dê lembranças a titia! gritou.
- Sim, sim!
- Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da
fumaça as rodas já se moviam.
- Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao
primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o
nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e
Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já
sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas
sobre os ombros como as de uma donzela - o rosto estava inclinado sem sorrir,
talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.
No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as
sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a
companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais
fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo.
Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E
de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a
felicidade - tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes,
cascas de laranja - a força fluia e refluia no seu coração com pesada riqueza.
Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na
cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer
pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo.
Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras
mutáveis seu prazer ainda húmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos
carros, conseguiu aproximar-se do ónibus burlando a fila, espiando com ironia;
nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris
subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.
O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento
enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a
usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe
ardia no peito. António mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado
sempre fora "sua", e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com
prazer, junto à escrivaninha.
- "Ela" foi?
- Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho.
Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e
nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro
anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza,
não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exacto e
distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para
sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este
menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo
mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe
verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua
forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida.
Era a primeira vez que ele dizia "mamãe" nesse tom e sem pedir nada. Fora
mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com
violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não
encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar.
Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez
pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe,
quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos
a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo
de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina,
a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o
corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo
como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.
- Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.
Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a
porta do apartamento.
António mal teve tempo de levantar os olhos do livro - e com surpresa
espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador
descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz.
Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem
em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido
embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e
um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.
Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de
súbito pondo-se em marcha.
Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela
via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa,
com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca
endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também
olhava fixo para a frente, surpreendida e ingénua. Vistas de cima as duas
figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais
escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam...
O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase
quotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a
criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu
alcance ela transmitisse a seu filho... mas o quê? "Catarina", pensou, "Catarina,
esta criança ainda é inocente!" Em que momento é que a mãe, apertando uma
criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o
futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante
desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso.
Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que
momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora
mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém
saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem.
"Catarina", pensou com cólera, "a criança é inocente!" Tinham porém
desaparecido pela praia. O mistério partilhado.
"Mas e eu? e eu?" perguntou assustado. Os dois tinham ido embora
sozinhos. E ele ficara. "Com o seu sábado." E sua gripe. No apartamento
arrumado, onde "tudo corria bem". Quem sabe se sua mulher estava fugindo
com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das
cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um
engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido
moço e cheio de futuro - deprezava-a também, com aqueles olhos sonsos,
fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não
poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o
ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma
mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse
vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele
procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque
sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no
entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse
orgulhosa. Mas tinha se habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a
com ternura, e já agora ela sorria - sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem
nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que
faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às
vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde
nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam
cortado da vida diária. Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um
momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irónicos, e os olhos
de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como
se tivessem vívido desde sempre.
Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o
filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria - sozinha. Sentirase
frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia
tomar seus momentos - sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o
trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.
A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os
objectos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de
irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada
vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina
voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro
sono, Catarina interromperia um momento o jantar... e o elevador não pararia
por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.
- "Depois do jantar iremos ao cinema", resolveu o homem. Porque depois
do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos
rochedos do Arpoador.

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