Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A cozinheira feliz, a grandeza da sinceridade
Therezinha meu amor. Estás sempre em meu coração. Desde o momento
em que a vi meu coração tornou-se cativo de seus encantos. Ao vê-la meiga e
bela senti minh’alma perturbada minha vida até então vazia e triste. Tornou-se
cheia de luz e esperança acesa em meu peito a chama do amor. O amor que
despertou em mim. Therezinha queridinha do coração é iluminado pela sua
pureza e encontra em meu coração a grandeza de minha sinceridade. Que
felicidade podemos encontrar um dia num coração que pulse junto ao nosso,
irmanados nas doçuras e agruras da vida um coração amigo que nos conforte
uma alma pura que nos adore e leve ao céu doce balada de amor a mulher
querida com que sonhamos. Eternamente seu apaixonado Edgard. Da
Therezinha querida peço-lhe.
Resposta. Estrada São Luiz, 30-C, Santa Cruz é o meu Endereço.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A criada
Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas
espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era
feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o
sinal da vida.
Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços
indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas,
carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga
presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa
e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos
eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão
independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos
olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.
Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena
fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no
seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. “Eu tive medo”,
dizia com naturalidade. “Me deu uma fome”, dizia, e era sempre incontestável o
que dizia, não se sabe por quê. “Ele me respeita muito”, dizia do noivo e,
apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava
num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. “Eu tenho
vergonha”, dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de
pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de
trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. “Deus me livre, não
é?”, dizia ausente.
Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e
sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam
vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado
sofria e nada podia fazer. Só esperar.
Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém
ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração
apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo
passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela
acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de
seu repouso na tristeza.
Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter
bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito
antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se
descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na
escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais,
encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado
talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a
floresta.
Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a
floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os
olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta
que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.
Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na
floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera,
com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de
ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava:
fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.
Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam
constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar
roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.
Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela
lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que
estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais
remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que
trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando
calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.
A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de
comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa
esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho
discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera
em suas florestas.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A hora da Estrela (excerto)
... já que sou, o jeito é ser.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a
escrever. (...) Pensar é um ato. Sentir é um fato.
Estou fruindo o que existe. Calada, aérea, no meu grande sonho. Como
nada entendo - então adiro à vacilante realidade móvel. O real eu atinjo através
do sonho.
Eu te invento, realidade. E te ouço como remotos sinos surdamente
submersos na água badalando trémulos. Estou no âmago da morte? E para
isso estou viva? O âmago sensível. E vibra-me esse it. Estou viva. Como uma
ferida, flor na carne, está em mim aberto o caminho do doloroso sangue. Com
o directo e por isso mesmo inocente erotismo dos índios da Lagoa Santa.
Eu, exposta às intempéries, eu inscrição aberta no dorso de uma pedra,
dentro dos largos espaços cronológicos legados pelo homem da pré-história.
Sopra o vento quente das grandes extensões milenares e cresta a minha
superfície
Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a
quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora
- também não faço a menor falta, e até o que eu escrevo um outro escreveria.
Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode
lacrimejar piegas.
Escrevo neste instante com prévio pudor por vos estar invadindo com tal
narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão
vivo de vida poderá quem sabe escorrer e coagular em cubos de geléia
trémula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há
veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que
cada um reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem
pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa
mais preciosa do que ouro - existe a quem falte o delicado essencial. (...)
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora seja
obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com
falso livre arbítrio - vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais
importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não
quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é
que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e
'gran finale' seguido de silêncio e chuva caindo.
Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de
ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais
dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um
desonesto. (...) Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que
sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a
mim.
... dormia de combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de
sangue pálido (...) Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido.
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de nãosei-
o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho
distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se
'panos', diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada
de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda
era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa,
de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisarlhe
que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo,
pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do
rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava.
Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.
Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada
que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo.
Sofro por ela.
Então - ali deitada - teve uma húmida felicidade suprema, pois ela
nascera para o abraço da morte. (...) E havia certa sensualidade no modo
como se encolhera. Ou é como a pré-morte se parece com a intensa ânsia
sensual? É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. (...)
Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte
pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer
um desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca
experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que
mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser
mulher. Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor.
Sim, doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a
outra coisa que vós chamais de alma. (...)
Nesta hora exacta, Macabéa sente um fundo enjoo de estômago e quase
vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de
mil pontas.
O que é que eu estou vendo agora é e que me assusta? Vejo que ela
vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no
âmago: vitória!
E então - então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a
águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato
estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.
(...) O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo
em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo.
Etc. , etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio
desafinada. Eu vos pergunto:
- Qual é o peso da luz?
E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu
Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?! Não
esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Enfim, descobrimos, agora, que tudo começa e acaba com um sim.
Também é preciso coragem para morrer, silêncio para ouvir o grito da vida.
In “A Hora da Estrela"
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A lucidez perigosa
Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa actual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A menor mulher do Mundo
Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Petre,
caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma
pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que
menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele
foi.
No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E
- como uma caixa dentro de um caixa - entre os menores pigmeus do mundo
estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à
necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.
Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do
verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de
quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. “Escura como um
macaco”, informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu
concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e
lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.
Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante,
no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à
conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não
desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e
dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir
classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a
seu respeito.
Sua raça de gente está aos poucos sendo exterminada. Poucos
exemplares humanos restam dessa espécie que, não fosse o sonso perigo da
África, seria povo alastrado. Fora doença, infectado hálito de águas, comida
deficiente e feras rondantes, o grande risco para os escassos Likoualas está
nos selvagens Bantos, ameaça que os rodeia em ar silencioso como em
madrugada de batalha. Os Bantos os caçam em redes, como fazem com os
macacos. E os comem. Assim: caçam-nos em redes e os comem. A racinha de
gente, sempre a recuar e a recuar, terminou aquarteirando-se no coração da
África, onde o explorador afortunado a descobriria. Por defesa estratégica,
moram nas árvores mais altas. De onde as mulheres descem para cozinhar
milho, moer mandioca e colher verduras; os homens, para caçar. Quando um
filho nasce, a liberdade lhe é dada quase que imediatamente. É verdade que
muitas vezes a criança não usufruirá por muito tempo dessa liberdade entre
feras. Mas é verdade que, pelo menos, não se lamentará que, para tão curta
vida, longo tenha sido o trabalho. Pois mesmo a linguagem que a criança
aprende é breve e simples, apenas essencial. Os Likoualas usam poucos
nomes, chamam as coisas por gestos e sons animais. Como avanço espiritual,
têm um tambor. Enquanto dançam ao som do tambor, um machado pequeno
fica de guarda contra os Bantos, que virão não se sabe de onde.
Foi, pois, assim que o explorador descobriu, toda em pé e a seus pés, a
coisa humana menor que existe. Seu coração bateu porque esmeralda
nenhuma é tão rara. Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros.
Nem o homem mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça. Ali
estava uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar.
Foi então que o explorador disse, timidamente e com uma delicadeza de
sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz:
- Você é Pequena Flor.
Nesse instante Pequena Flor coçou-se onde uma pessoa não se coça. O
explorador - como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade a
que um homem, sempre tão idealista, ousa aspirar - o explorador, tão vívido,
desviou os olhos.
A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos
jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com
a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os
pés espalmados. Parecia um cachorro.
Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto
o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez “porque me dá
aflição”.
Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela
pequenez da mulher africana que - sendo tão melhor prevenir que remediar -
jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora.
Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou
um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma
bondade perigosa estava no ar.
Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e
ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa
menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das
melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A
existência de Pequena Flor levou a menina a sentir - com uma vaguidão que só
anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em
pensamento - levou-a a sentir, numa primeira sabedoria, que “a desgraça não
tem limites”.
Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase
de piedade:
- Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!
- Mas - disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa - mas é tristeza de
bicho, não é tristeza humana.
- Oh! Mamãe - disse a moça desanimada.
Foi em outra casa que um menino esperto teve uma idéia esperta:
- Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de
Paulinho enquanto ele está dormindo? quando ele acordasse, que susto, hein!
que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela!
a gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!
A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao
espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do
tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já
pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido
da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a
freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas,
puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a.
Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de
grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a
malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que
queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então
olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve
terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser
apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho
inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a
evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor
morde. “Vou comprar um terno novo para ele”, resolveu olhando-o absorta.
Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas,
obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma
superficialidade tranqüilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês
da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que
devia ser “escura como um macaco”. Então, olhando para o espelho do
banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele
seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância
insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um
domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e
milênios perdidos.
Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de
calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E
foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais
agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família
nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável,
aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A
alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou
possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria
cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:
- Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga - disse o pai
sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. - Nesta casa
tudo termina em briga.
- Você, José, sempre pessimista - disse a mãe.
- A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenezinho dela? -
disse ardente a filha mais velha de treze anos.
O pai mexeu-se atrás do jornal.
- Deve ser o bebê preto menor do mundo - respondeu a mãe, derretendose
de gosto. - Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha
grande!
- Chega de conversas! - disse o pai.
- Você há de convir - disse a mãe inesperadamente ofendida - que se
trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.
E a própria coisa rara?
Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração - quem
sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode
mais confiar - enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais
raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo.
Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser
humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde
que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou
espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.
É que a menor mulher do mundo estava rindo.
Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A
própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido
comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso
de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranqüilidade, entre as
espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso
numa ação - e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria
coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala,
ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela
continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada.
Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo
secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso
bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava
atrapalhado.
Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque,
dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.
É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de
Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que
o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela
acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava
muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena
Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador
- pode-se mesmo dizer seu “profundo amor”, porque, não tendo outros
recursos, ela estava reduzida à profundeza - pois nem de longe seu profundo
amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua
bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem
desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por
causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se
goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses
refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota,
amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a
um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena,
grávida, quente.
O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que
abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de
tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de
explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosaesverdeado,
como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.
Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se
chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e
recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras
articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.
Pequena Flor respondeu-lhe que “sim”. Que era muito bom ter uma árvore
para morar, sua, sua mesmo. Pois - e isso ela não disse, mas seus olhos se
tornaram tão escuros que o disseram - pois é bom possuir, é bom possuir, é
bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.
Marcel Petre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo
menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve
que se arranjar como pôde:
Pois olhe - declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão
- pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz..
in “Laços de família”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
A Mensagem
A princípio, quando a moça disse que sentia angústia, o rapaz se
surpreendeu tanto que corou e mudou rapidamente de assunto para disfarçar o
aceleramento do coração.
Mas há muito tempo - desde que era jovem - ele passara afoitamente do
simplismo infantil de falar dos acontecimentos em termos de “coincidência”. Ou
melhor - evoluindo muito e não acreditando nunca mais - ele considerava a
expressão “coincidência” um novo truque de palavras e um renovado ludíbrio.
Assim, engolida emocionadamente a alegria involuntária que a
verdadeiramente espantosa coincidência dela também sentir angústia lhe
provocara - ele se viu falando com ela na sua própria angústia, e logo com uma
moça! ele que de coração de mulher só recebera o beijo de mãe.
Viu-se conversando com ela, escondendo com secura o maravilhamento
de enfim poder falar sobre coisas que realmente importavam; e logo com uma
moça! Conversavam também sobre livros, mal podiam esconder a urgência
que tinham de pôr em dia tudo em que nunca antes haviam falado. Mesmo
assim, jamais certas palavras eram pronunciadas entre ambos. Dessa vez não
porque a expressão fosse mais uma armadilha de que os outros dispõem para
enganar os moços. Mas por vergonha. Porque nem tudo ele teria coragem de
dizer, mesmo que ela, por sentir angústia, fosse pessoa de confiança. Nem em
missão ele falaria jamais, embora essa expressão tão perfeita, que ele por
assim dizer criara, lhe ardesse na boca, ansiosa por ser dita.
Naturalmente, o fato dela também sofrer simplificara o modo de se tratar
uma moça, conferindo-lhe um caráter masculino. Ele passou a tratá-la como
camarada.
Ela mesma também passou a ostentar com modéstia aureolada a própria
angústia, como um novo sexo. Híbridos - ainda sem terem escolhido um modo
pessoal de andar, e sem terem ainda uma caligrafia definitiva, cada dia a
copiarem os pontos de aula com letra diferente - híbridos eles se procuravam,
mal disfarçando a gravidade. Uma vez ou outra, ele ainda sentia aquela
incrédula aceitação da coincidência: ele, tão original, ter encontrado alguém
que falava a sua língua! Aos poucos compactuaram. Bastava ela dizer, como
numa senha, “passei ontem uma tarde ruim”, e ele sabia com austeridade que
ela sofria como ele sofria. Havia tristeza, orgulho e audácia entre ambos.
Até que também a palavra angústia foi secando, mostrando como a
linguagem falada mentia. (Eles queriam um dia escrever.) A palavra angústia
passou a tomar aquele tom que os outros usavam, e passou a ser um motivo
de leve hostilidade entre ambos. Quando ele sofria, achava uma gafe ela falar
em angústia. “Eu já superei esta palavra”, ele sempre superava tudo antes
dela, só depois é que a moça o alcançava.
E aos poucos ela se cansou de ser aos olhos dele a única mulher
angustiada. Apesar disso lhe conferir um caráter intelectual, ela também era
alerta a essa espécie de equívocos. Pois ambos queriam, acima de tudo, ser
autênticos. Ela, por exemplo, não queria erros nem mesmo a seu favor, queria
a verdade, por pior que fosse. Aliás, às vezes tanto melhor se fosse “por pior
que fosse”. Sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em ser
condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava de... de
ser uma pessoa. Ao mesmo tempo que isso a lisonjeava, ofendia um pouco:
era como se ele se surpreendesse de ela ser capaz, exatamente por não julgála
capaz. Embora, se ambos não tomassem cuidado, o fato dela ser mulher
poderia de súbito vir à tona. Eles tomavam cuidado.
Mas, naturalmente, havia a confusão, a falta de possibilidade de
explicação, e isso significava tempo que ia passando. Meses mesmo.
E apesar da hostilidade entre ambos se tornar gradativamente mais
intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se impedir
de se procurar. E isso porque - se na boca dos outros chamá-los de “jovens”
lhes era uma injúria - entre ambos “ser jovem” era o mútuo segredo, e a
mesma desgraça irremediável. Eles não podiam deixar de se procurar porque,
embora hostis - com o repúdio que seres de sexo diferente têm quando não se
desejam -, embora hostis, eles acreditavam na sinceridade que cada um tinha,
versus a grande mentira alheia. O coração ofendido de ambos não perdoava a
mentira alheia. Eles eram sinceros. E, por não serem mesquinhos, passavam
por cima do fato de terem muita facilidade para mentir - como se o que
realmente importasse fosse apenas a sinceridade da imaginação. Assim continuaram
a se procurar, vagamente orgulhosos de serem diferentes dos outros,
tão diferentes a ponto de nem se amarem. Aqueles outros que nada faziam
senão viver. Vagamente conscientes de que havia algo de falso em suas
relações. Como se fossem homossexuais de sexo oposto, e impossibilitados de
unir, em uma só, a desgraça de cada um. Eles apenas concordavam no único
ponto que os unia: o erro que havia no mundo e a tácita certeza de que se eles
não o salvassem seriam traidores. Quanto a amor, eles não se amavam, era
claro. Ela até já lhe falara de uma paixão que tivera recentemente por um
professor. Ele chegara a lhe dizer - já que ela era como um homem para ele -,
chegara mesmo a lhe dizer, com uma frieza que inesperadamente se quebrara
em horrível bater de coração, que um rapaz é obrigado a resolver “certos
problemas”, se quiser ter a cabeça livre para pensar. Ele tinha dezesseis anos,
e ela, dezessete. Que ele, com severidade, resolvia de vez em quando certos
problemas, nem seu pai sabia.
O fato é que, tendo uma vez se encontrado na parte secreta deles
mesmos, resultara na tentação e na esperança de um dia chegar ao máximo.
Que máximo?
Que é, afinal, que eles queriam? Eles não sabiam, e usavam-se como
quem se agarra em rochas menores até poder sozinho galgar a maior, a difícil
e a impossível; usavam-se para se exercitarem na iniciação; usavam-se
impacientes, ensaiando um com o outro o modo de bater asas para que enfim -
cada um sozinho e liberto pudesse dar o grande vôo solitário que também
significaria o adeus um do outro. Era isso? Eles se precisavam
temporariamente, irritados pelo outro ser desastrado, um culpando o outro de
não ter experiência. Falhavam em cada encontro, como se numa cama se
desiludissem. O que é, afinal, que queriam? Queriam aprender. Aprender o
quê? eram uns desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes
sem ter vergonha, porque sabiam que havia os que passam fome; eles comiam
com fome e vergonha. Infelizes? Como? se na verdade tocavam, sem nenhum
motivo, num tal ponto extremo de felicidade como se o mundo fosse sacudido e
dessa árvore imensa caíssem mil frutos. Infelizes? se eram corpos com sangue
como uma flor ao sol. Como? se estavam para sempre sobre as próprias
pernas fracas, conturbados, livres, milagrosamente de pé, as pernas dela
depiladas, as dele indecisas mas a terminarem em sapatos número 44. Como
poderiam jamais ser infelizes seres assim?
Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes,
forçando, uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se
repetira - e sem nem ao menos se amarem. O ideal os sufocava, o tempo
passava inútil, a urgência os chamava - eles não sabiam para o que
caminhavam, e o caminho os chamava. Um pedia muito do outro, mas é que
ambos tinham a mesma carência, e jamais procurariam um par mais velho que
lhes ensinasse, porque não eram doidos de se entregarem sem mais nem
menos ao mundo feito.
Um modo possível de ainda se salvarem seria o que eles nunca
chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa palavra
constrangedora? Seria encontrarem-se quando, por coincidência, caísse uma
chuva repentina sobre a cidade? Ou talvez, enquanto tomavam um refresco,
olharem ao mesmo tempo a cara de uma mulher passando na rua? ou mesmo
encontrarem-se por coincidência na velha noite de lua e vento? Mas ambos
haviam nascido com a palavra poesia já publicada com o maior despudor nos
suplementos de domingo dos jornais. Poesia era a palavra dos mais velhos. E
a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos. Em quem o instinto
avisa: que um dia serão caçados. Eles já tinham sido por demais enganados
para poderem agora acreditar. E, para caçá-los, teria sido preciso uma enorme
cautela, muito faro e muita lábia, e um carinho ainda mais cauteloso - um
carinho que não os ofendesse - para, pegando-os desprevenidos, poder
capturá-los na rede. E, com mais cautela ainda para não despertá-los, levá-los
astuciosamente para o mundo dos viciados, para o mundo já criado; pois esse
era o papel dos adultos e dos espiões. De tão longamente ludibriados,
vaidosos da própria amargura, tinham repugnância por palavras, sobretudo
quando uma palavra - como poesia - era tão esperta que quase exprimia, e aí
então é que mostrava mesmo como exprimia pouco. Ambos tinham, na
verdade, repugnância pela maioria das palavras, o que estava longe de facilitar-
lhes uma comunicação, já que eles ainda não haviam inventado palavras
melhores: eles se desentendiam constantemente, obstinados rivais. Poesia?
Oh, como eles a detestavam. Como se fosse sexo. Eles também achavam que
os outros queriam caçá-los não para o sexo, mas para a normalidade. Eles
eram medrosos, científicos, exaustos de experiência. Na palavra experiência,
sim, eles falavam sem pudor e sem explicá-la: a expressão ia mesmo variando
sempre de significado. Experiência às vezes também se confundia com
mensagem. Eles usavam ambas as palavras sem aprofundar-lhes muito o
sentido.
Aliás, não aprofundavam nada, como se não houvesse tempo, como se
existissem coisas demais sobre as quais trocar idéias. Não percebendo que
não trocavam nenhuma idéia.
Bem, mas não era apenas isso, e nem com essa simplicidade. Não era
apenas isso: nesse ínterim o tempo ia passando, confuso, vasto, entrecortado,
e o coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio contra o mundo
que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era piedade, e havia neles
a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que de repente podia se
quebrar denunciando duas caras que se consternavam porque eles não sabiam
como se sentar com naturalidade numa sorveteria: tudo então se quebrava,
denunciando de repente dois impostores. O tempo ia passando, nenhuma idéia
se trocava, e nunca, nunca eles se compreendiam com perfeição como na
primeira vez em que ela dissera que sentia angústia e, por milagre, também ele
dissera que sentia, e formara-se o pacto horrível. E nunca, nunca acontecia
alguma coisa que enfim arrematasse a cegueira com que estendiam as mãos e
que os tornasse prontos para o destino que impaciente os esperava, e os
fizesse enfim dizer para sempre adeus.
Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como uma
gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse a
plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como uma
gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei.
O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles
estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de uma casa velha e vazia. Mas
eles tinham uma vida pobre e ansiosa como se nunca fossem envelhecer,
como se nada jamais lhes fosse suceder - e então a casa tornou-se um
acontecimento. Haviam voltado da última aula do período escolar. Tinham
tomado o ônibus, saltado, e iam andando. Como sempre, andavam entre
depressa e soltos, e de repente devagar, sem jamais acertar o passo, inquietos
quanto à presença do outro. Era um dia ruim para ambos, véspera de férias. A
última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada um desprezando o que
na casa mútua de ambos as famílias lhes asseguravam como futuro e amor e
incompreensão. Sem um dia seguinte e sem amarras, eles estavam pior que
nunca, mudos, de olhos abertos.
Nessa tarde a moça estava de dentes cerrados, olhando tudo com rancor
ou ardor, como se procurasse no vento, na poeira e na própria extrema
pobreza de alma mais uma provocação para a cólera.
E o rapaz, naquela rua da qual eles nem sabiam o nome, o rapaz pouco
tinha do homem da Criação. O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda,
involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e
indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário
dela, que estava agressiva. Informes como eram, tudo lhes era possível,
inclusive às vezes permutavam as qualidades: ela se tornava como um
homem, e ele com uma doçura quase ignóbil de mulher. Várias vezes ele
quase se despedira, mas, vago e vazio como estava, não saberia o que fazer
quando voltasse para casa. como se o fim das aulas tivesse cortado o último
elo. Continuara, pois, mudo atrás dela, seguindo-a com a docilidade do
desamparo. Apenas um sétimo sentido de mínima escuta ao mundo o
mantinha, ligando-o em obscura promessa ao dia seguinte. Não, os dois não
eram propriamente neuróticos e - apesar do que eles pensavam um do outro
vingativamente nos momentos de mal contida hostilidade - parece que a
psicanálise não os resolveria totalmente. Ou talvez resolvesse.
Era uma das ruas que desembocam diante do Cemitério S. João Batista,
com poeira seca, pedras soltas e pretos parados à porta dos botequins.
Os dois andavam na calçada esburacada que mal os continha de tão
estreita. Ela fez um movimento - ele pensou que ela ia atravessar a rua e deu
um passo para segui-la - ela se voltou sem saber de que lado ele estava - ele
recuou procurando-a. Naquele mínimo instante em que se buscaram inquietos,
viraram-se ao mesmo tempo de costas para os ônibus - e ficaram de pé diante
da casa, tendo ainda a procura no rosto.
Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou
talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão “perto”.
Eles mal tinham espaço para olhá-la, imprensados como estavam na calçada
estreita, entre o movimento ameaçador dos ônibus e a imobilidade
absolutamente serena da casa. Não, não era por bombardeio: mas era uma
casa quebrada, como diria uma criança. Era grande, larga e alta como as
casas ensobradadas do Rio antigo. Uma grande casa enraizada.
Com uma indagação muito maior do que a pergunta que tinham no rosto,
eles se haviam voltado incautelosamente ao mesmo tempo, e a casa estava
tão perto como se, saindo do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma súbita
parede. Atrás deles os ônibus, à frente a casa - não havia como não estar ali.
Se recuassem seriam atingidos pelos ônibus, se avançassem esbarrariam na
monstruosa casa. Tinham sido capturados.
A casa era alta, e perto, eles não podiam olhá-la sem ter que levantar
infantilmente a cabeça, o que os tornou de súbito muito pequenos e
transformou a casa em mansão. Era como se jamais alguma coisa estivesse
estado tão perto deles. A casa devia ter tido uma cor. E qualquer que fosse a
cor primitiva das janelas, estas eram agora apenas velhas e sólidas.
Apequenados, eles abriram os olhos espantados: a casa era angustiada.
A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma
construção que pesava no peito dos dois meninos. Um sobrado como quem
leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiúra
pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado?! Ou fora o tempo que
se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento,
aquele silêncio de enforcado tranqüilo? A casa era forte como um boxeur sem
pescoço. E ter a cabeça diretamente ligada aos ombros era a angústia. Eles
olharam a casa como crianças diante de uma escadaria.
Enfim ambos haviam inesperadamente alcançado a meta e estavam
diante da esfinge. Boquiabertos, na extrema união do medo e do respeito e da
palidez, diante daquela verdade. A nua angústia dera um pulo e colocara-se
diante deles - nem ao menos familiar como a palavra que eles tinham se
habituado a usar. Apenas uma casa grossa, tosca, sem pescoço, só aquela
potência antiga.
Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa grande.
E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também a
grande casa.
A moça olhava adormecida. Quanto ao rapaz, seu sétimo sentido
enganchara-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do fio
um mínimo estremecimento de resposta. Mal se movia, com medo de espantar
a própria atenção. A moça ancorara-se no espanto, com medo de sair deste
para o terror de uma descoberta. Mal falassem, e a casa desabaria. O silêncio
de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes eles tinham sido forçados a
olhá-lo, agora, mesmo que lhes avisassem que o caminho estava livre para
fugirem, ali ficariam, presos pelo fascínio e pelo horror. Fixando aquela coisa
erguida tão antes deles nascerem, aquela coisa secular e já esvaziada de
sentido, aquela coisa vinda do passado. Mas e o futuro?! Oh Deus, dai-nos o
nosso futuro! A casa sem olhos, com a potência de um cego. E se tinha olhos,
eram redondos olhos vazios de estátua. Oh Deus, não nos deixeis ser filhos
desse passado vazio, entregai-nos ao futuro. Eles queriam ser filhos. Mas não
dessa endurecida carcaça fatal, eles não compreendiam o passado: oh livrainos
do passado, deixai-nos cumprir o nosso duro dever. Pois não era a
liberdade o que as duas crianças queriam, elas bem queriam ser convencidas e
subjugadas e conduzidas mas teria que ser por alguma coisa mais poderosa
que o grande poder que lhes batia no peito.
A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que
sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! - porque na sua avidez ela era
ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. A moça subitamente
desviou o rosto com uma espécie de grunhido.
Quanto ao rapaz, ele rapidamente perdia pé na vaguidão como se fosse
ficando sem um pensamento. Isso também era resultado da luz da tarde: era
uma luz lívida e sem hora. O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo, e ele
agora não tinha nenhuma ajuda das palavras dos outros: exatamente como
temerariamente aspirara um dia conseguir. Só que não contara com a miséria
que havia em não poder exprimir.
Verdes e nauseados, eles não saberiam exprimir. A casa simbolizava
alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar, mesmo com toda uma vida
de procura de expressão. Procurar a expressão, por uma vida inteira que fosse,
seria em si um divertimento, amargo e perplexo, mas divertimento, e seria uma
divergência que pouco a pouco os afastaria da perigosa verdade - e os
salvaria. Logo eles que, na desesperada esperteza de sobreviver, já tinham
inventado para eles mesmos um futuro: ambos iam ser escritores, e com uma
determinação tão obstinada como se exprimir a alma a suprimisse enfim. E se
não suprimisse, seria um modo de só saber que se mente na solidão do próprio
coração.
Ao passo que com a casa do passado eles não poderiam brincar. Agora,
tão menores que ela, parecia-lhes que tinham apenas brincado de ser moço e
doloroso e de dar a mensagem. Agora, espantados, tinham finalmente o que
haviam perigosa e imprudentemente pedido: eram dois jovens realmente
perdidos. Como diriam as pessoas mais velhas, “eles estavam tendo o que
bem mereciam”. E eram tão culpados como crianças culpadas, tão culpados
como são inocentes os criminosos. Ah, se ainda pudessem apaziguar o mundo
por eles exacerbado, assegurando-lhe: “estávamos apenas brincando! somos
dois impostores!” Mas era tarde. “Rende-te sem condição e faze de ti uma parte
de mim que sou o passado” - dizia-lhes a vida futura. E, por Deus, em nome de
que poderia alguém exigir que tivessem esperança de que o futuro seria deles?
quem?! mas quem se interessava em esclarecer-lhes o mistério, e sem mentir?
havia por acaso alguém trabalhando nesse sentido? Dessa vez, emudecidos
como estavam. nem lhes ocorreria acusar a sociedade.
A moça havia subitamente voltado o rosto com um grunhido, uma espécie
de soluço ou tosse.
“Meio que chorar nessa hora é bem de mulher”, pensou ele do fundo de
sua perdição, sem saber o que queria dizer com “essa hora”. Mas esta foi a
primeira solidez que ele encontrou para si mesmo. Agarrando-se a essa
primeira tábua, pôde voltar cambaleante à tona, e como sempre antes da
moça. Voltou antes dela, e viu uma casa de pé com um cartaz de “Aluga-se”.
Ouviu o ônibus às suas costas, viu uma casa vazia, e ao seu lado a moça com
um rosto doentio, procurando escondê-lo do homem já acordado: ela procurava
por algum motivo ocultar a cara.
Ainda vacilante, ele esperou com polidez que ela se recompusesse.
Esperou vacilante, sim, mas homem. Magro e irremediavelmente moço, sim,
mas homem. Um corpo de homem era a solidez que o recuperava sempre.
Volta e meia, quando precisava muito, ele se tornava um homem. Então, com
mão incerta, acendeu sem naturalidade um cigarro, como se ele fosse os
outros, socorrendo-se dos gestos que a maçonaria dos homens lhe dava como
apoio e caminho. E ela?
Mas a moça saiu de tudo isso pintada com batom, com o ruge meio
manchado, e enfeitada por um colar azul. Plumas que um momento antes
haviam feito parte de uma situação e de um futuro, mas agora era como se ela
não tivesse lavado o rosto antes de dormir e acordasse com as marcas
impudicas de uma orgia anterior. Pois ela, volta e meia, era uma mulher.
Com um cinismo reconfortante, o rapaz olhou-a curioso. E viu que ela não
passava de uma moça.
- Fico por aqui mesmo, disse-lhe então despedindo-se com altivez, ele
que nem sequer tinha mais hora certa de voltar para casa e sentia no bolso a
chave da porta.
Despediram-se e eles, que nunca se apertavam as mãos porque seria
convencional, apertaram-se as mãos, pois ela, na falta de jeito de em tão má
hora ter seios e um colar, ela estendera desastradamente a sua. O contato das
duas mãos úmidas se apalpando sem amor constrangeu o rapaz como uma
operação vergonhosa, ele corou. E ela, com batom e ruge, procurou disfarçar a
própria nudez enfeitada. Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a
seguissem; esquiva na sua humildade de ter uma condição.
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse divertido:
“será possível que mulher possa realmente saber o que é angústia?” E a
dúvida fez com que ele se sentisse muito forte. “Não, mulher servia mesmo era
para outra coisa, isso não se podia negar.” E era de um amigo que ele
precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então limpo e franco, sem nada a
esconder, leal como um homem. De qualquer tremor de terra, ele saía com um
movimento livre para a frente, com a mesma orgulhosa inconseqüência que faz
o cavalo relinchar. Enquanto ela saiu costeando a parede como uma intrusa, já
quase mãe dos filhos que um dia teria, o corpo pressentindo a submissão,
corpo sagrado e impuro a carregar. O rapaz olhou-a, espantado de ter sido
ludibriado pela moça tanto tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que
acabavam de crescer. Sou homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De
cada luta ou repouso, ele saía mais homem, ser homem se alimentava mesmo
daquele vento que agora arrastava poeira pelas ruas do Cemitério S. João
Batista. O mesmo vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se
encolhesse ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua
nudez, esse vento das ruas.
O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com olhos pornográficos e
curiosos que não pouparam nenhum detalhe humilde da moça. A moça que de
súbito pôs-se a correr desesperadamente para não perder o ônibus...
Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como uma doida para
não perder o ônibus, intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco de saia
curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...
Alguma coisa incômoda o desequilibrara. O que era? Um momento de
grande desconfiança o tomava. Mas o que era?! Urgentemente,
inquietantemente: o que era? Ele a vira correr toda ágil mesmo que o coração
da moça, ele bem adivinhava, estivesse pálido. E vira-a, toda cheia de
impotente amor pela humanidade, subir como um macaco no ônibus - e viu-a
depois sentar-se quieta e comportada, recompondo a blusa enquanto esperava
que o ônibus andasse... Seria isso? Mas o que poderia haver nisso que o
enchia de desconfiada atenção? Talvez o fato dela ter corrido à toa, pois o
ônibus ainda não ia partir, havia pois tempo... Ela nem precisava ter corrido...
Mas o que havia nisso tudo que fazia com que ele erguesse as orelhas em
escuta angustiada, numa surdez de quem jamais ouvirá a explicação?
Ele tinha acabado de nascer um homem. Mas, mal assumira o seu
nascimento, e estava também assumindo aquele peso no peito; mal assumira a
sua glória, e uma experiência insondável dava-lhe a primeira futura ruga.
Ignorante, inquieto, mal assumira a masculinidade, e uma nova fome ávida
nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora. Estaria ele
tendo o primeiro medo de que alguma coisa fosse impossível? A moça era um
zero naquele ônibus parado, e no entanto, homem que agora ele era, o rapaz
de súbito precisava se inclinar para aquele nada, para aquela moça. E nem ao
menos inclinar-se de igual para igual, nem ao menos inclinar-se para
conceder... Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para
quê? para lembrar-se de uma cláusula? para que ela ou outra qualquer não o
deixasse ir longe demais e se perder? para que ele sentisse em sobressalto,
como estava sentindo, que havia a possibilidade de erro? Ele precisava dela
com fome para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne
pobre da qual, ao subir no ônibus como um macaco, ela parecia ter feito um
caminho fatal.
Que é! mas afinal que é que está me acontecendo? assustou-se ele.
Nada. Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de fraqueza
e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo.
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse sistema
de duro juízo final, que não permite nem um segundo de incredulidade senão o
ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua - e tudo agora estava estragado
e seco como se ele tivesse a boca cheia de poeira. Agora e enfim sozinho,
estava sem defesa à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam
ensiná-lo a ser um homem. Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na
poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.
In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977
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