domingo, 11 de julho de 2010

O crime do professor de Matemática

Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O crime do professor de Matemática
Quando o homem atingiu a colina mais alto, os sinos tocavam na cidade
embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava a
única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na
mão.
Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e
miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças
espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal
alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e
pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas
secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal
pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar
melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia
nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram
claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor
de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra,
pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça
para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma
voz atingiu por um instante a altura - sim, ele estava bem só. O ar fresco era
inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada
balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não
havia porque esperar mais.
E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque
de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso.
Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra
e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se concentrava apenas na mão
importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava.
Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegre tocaram
novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.
O cachorro desconhecido estava à luz.
Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no cachorro duro e
negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito,
pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e começou a observar a paisagem.
Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas
observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha
embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar
que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que
embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão,
enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se
estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol.
Então, já que o cão desconhecido substituía o “outro”, quis que ele, para maior
perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia
nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele se entendia a si próprio com
frieza, sem nenhum fio solto.
Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar
determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única
árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia
assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: “não
era necessário enterrar no centro, eu também enterraria o outro, digamos, bem
onde eu estivesse neste mesmo momento em pé”. Porque se tratava de dar ao
acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e
evidente - no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na
igreja - tratava-se de tornar o faro ao máximo visível à superfície do mundo sob
o céu. Tratava-se de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e
impune de um pensamento.
À idéia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé -
o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente
pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o
esboço da cova do cão.
Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se
interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não
cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito
porque pensou lúcido: “se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco,
enterrá-lo-ia bem à tona”. Ele achava que o cão à superfície da terra não
perderia a sensibilidade.
Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e
pousou-o na cova.
Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão
morto numa esquina, a idéia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e
surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de
baba seca. Era um cão estranho e objetivo.
O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto
com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim
precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as
mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o
alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.
Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou
nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um
suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime
fora punido e ele estava livre.
E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então
imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O
verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro
município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.
Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se
tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro
estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o
aproximasse da lembrança.
“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”, pensou então
com auxílio da saudade. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te
servisse ao mesmo tempo de alma. E tu - como saber jamais que nome me
deste? Quanto me amaste mais do que te amei”, refletiu curioso.
“Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu
com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar
insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à
vontade.
“Lembro-me de ti quando eras pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno,
bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti
uma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a ser
todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas
brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão”, lembrou-se o
homem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e rosnando, eu terminava
jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele
meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar.”
“E como cheiravas as ruas!”, pensou o homem rindo um pouco, “na
verdade não deixaste pedra por cheirar... Este era o teu lado infantil. Ou era o
teu verdadeiro cumprimento de ser cão? e o resto apenas brincadeira de ser
meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranqüilo o rabo, parecias rejeitar
em silêncio o nome que eu te dera. Ah, sim, eras irredutível: eu não queria que
comesses carne para que não ficasses feroz, mas pulaste um dia sobre a mesa
e, com uma ferocidade que não vem do que se come, me olhaste mudo e
irredutível com a carne na boca. Porque, embora meu, nunca me cedeste nem
um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a
compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te
amar, e isso começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente
das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade
e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me
ensinavas, e era isto também que estava se tornando pesado. Não me pedindo
nada, me pedias demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim,
exigias que eu fosse um homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes,
sentado sobre as patas diante de mim, como me espiavas! Eu então olhava o
teto, tossia, dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me
espiavas. A quem irias contar? Finge - dizia-me eu -, finge depressa que és
outro, dá a falsa entrevista, faz-lhe um afago, joga-lhe um osso - mas nada te
distraía: tu me espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de horror, quando eras tu o
inocente: que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro, e
eriçado, atingido, erguer-te-ias até a porta ferido para sempre. Oh, eras todos
os dias um cão que se podia abandonar. Podia-se escolher. Mas tu, confiante,
abanavas o rabo.”
“Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria
angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a
angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria
insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor
inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela
amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem
teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa.”
“Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te
abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias - com a
incompreensão serena e simples de quem é um cão heróico - que eu fosse um
homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram:
porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e
família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova
cidade, e ainda mais um cão? ‘Que não cabe em parte alguma’, disse Marta
prática. ‘Que incomodará os passageiros’, explicou minha sogra sem saber que
previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para
elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras
a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já
era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o
crime maior que eu não teria coragem de cometer”, pensou o homem cada vez
mais lúcido.
“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair
e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”, pensou o homem. “Porque
eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por
abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime
não era punível.”
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só
agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o
cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado
castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.
Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final. Este
crime ninguém lhe condenava. Nem a Igreja. “Todos são meu cúmplices, José.”
Eu teria que bater de porta e porta e mendigar que me acusassem e me
punissem: todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida.
Este crime ninguém me condena. Nem tu, José, me condenarias. Pois bastaria,
esta pessoa poderosa que sou, escolher de te chamar - e, do teu abandono
nas ruas, num pulo me lamberias a face com alegria e perdão. Eu te daria a
outra face a beijar.”
O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo.
Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão desconhecido em
tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que
inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de
bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém dá uma esmola para enfim
poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.
Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a
mentira: como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem - e
como homem assumisse o seu crime - ele olhava a cova onde enterrara a sua
fraqueza e a sua condição.
E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter
punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir
o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com
movimentos simples - desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro,
infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o
professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então
olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E
como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao
seio de sua família.
In Laços de Família.
Rio de Janeiro, Rocco, 1998.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O Manifesto da cidade
Por que não tentar neste momento, que não é grave, olhar pela janela?
Esta é a ponte. Este é o rio. Eis a Penitenciária. Eis o relógio. É Recife. Eis o
canal. Onde está a pedra que não sinto? a pedra que esmagou a cidade. Na
forma palpável das coisas. Pois esta é uma cidade realizada. Seu último
terremoto se perde em datas. Estendo a mão e sem tristeza contorno de longe
a pedra. Alguma coisa ainda escapa da rosa-dos-ventos. Alguma coisa se
endureceu na seta de aço que indica o rumo de - Outra Cidade.
Este momento não é grave. Aproveito e olho pela janela. Eis uma casa.
Apalpo tuas escadas, as que subi em Recife. Depois a pilastra curta. Estou
vendo tudo extraordinariamente bem. Nada me foge. A cidade traçada. Com
que engenhosidade. Pedreiros, carpinteiros, engenheiros, santeiros, artesãos -
estes contaram com a morte. Estou vendo cada vez mais claro: esta é a casa,
a minha, a ponte, o rio, a Penitenciária, os blocos quadrados dos edifícios, a
escadaria deserta de mim, a pedra.
Mas eis que surge um Cavalo. Eis um cavalo com quatro pernas e cascos
duros de pedra, pescoço potente, e cabeça de Cavalo. Eis um cavalo.
Se esta foi uma palavra ecoando no chão duro, qual é o teu sentido?
Como é cavo este coração no peito da cidade. Procuro, procuro. Casa,
calçadas, degraus, monumento, poste, tua indústria.
Da mais alta muralha - olho. Procuro. Da mais alta muralha não recebo
nenhum sinal. Daqui não vejo, pois tua clareza é impenetrável. Daqui não vejo
mas sinto que alguma coisa está escrita a carvão numa parede. Numa parede
desta cidade.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O morto no Mar da Urca
Eu estava no apartamento de d. Lourdes, costureira, provando meu
vestido pintado pela Olly - e dona Lourdes disse: morreu um homem no mar,
olhe os bombeiros. Olhei e só vi o mar que devia ser muito salgado, mar azul,
casas brancas. E o morto?
O morto em salmoura. Não quero morrer! gritei-me muda dentro do meu
vestido. O vestido é amarelo e azul. E eu? morta de calor, não morta de mar
azul.
Vou contar um segredo: meu vestido é lindo e não quero morrer. Na
sexta-feira o vestido estará em casa, e no sábado eu o usarei. Sem morte, só
mar azul. Existem nuvens amarelas? Existem douradas. Eu não tenho história.
O morto tem? Tem: foi tomar banho de mar na Urca, o bobo, e morreu, quem
mandou? Eu tomo banho de mar com cuidado, não sou tola, e só vou à Urca
para provar vestidos. E três blusas. S. foi comigo. Ela é minuciosa na prova. E
o morto? minuciosamente morto?
Vou contar uma história: era uma vez um rapaz novo ainda que gostava
de banho de mar. Daí, ele foi numa manhã de quarta-feira para a Urca. Na
Urca, nas pedras da Urca, eu não vou porque está cheio de ratos. Mas o rapaz
não ligava para os ratos. Nem os ratos ligavam para ele. O casario branco da
Urca. Isso ele ligava. Então tinha uma mulher provando um vestido e que
chegou tarde demais: o rapaz já estava morto. Salgado. Tinha piranha no mar?
Fiz que não entendi. Não entendo mesmo a morte. Um rapaz morto?
Morto de bobo que era. Só se deve ir à Urca para provar vestido alegre. A
mulher, que sou eu, só quer alegria. Mas eu me curvo diante da morte. Que
virá, virá, virá. Quando? aí é que está, pode vir a qualquer momento. Mas eu,
que estava provando o vestido no calor da manhã, pedi uma prova de Deus. E
senti uma coisa intensíssima, um perfume intenso demais de rosas. Entaõ tive
a prova, as duas provas; de Deus e do vestido.
Só se deve morrer de morte morrida, nunca de desastre, nunca de
afogação no mar. Eu peço proteção para os meus, que são muitos. E a
proteção, tenho certeza, virá.
Mas e o rapaz? e sua história? Capaz de ser estudante. Nunca saberei.
Fiquei apenas olhando o mar e o casario. Dona Lourdes imperturbável,
perguntando se apertava mais na cintura. Eu disse que sim, que cintura é para
se ver apertada. Mas estava atônita. Atônita no meu vestido lindo.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O nascimento do prazer (trecho)
O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada
dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não
tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma
perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se
a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida
incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se
deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não
tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma
película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em
qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem
sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O ovo e a galinha
De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só
olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um
ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um
ovo há três milênios. - No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de
um ovo. - Só vê o ovo quem já o tiver visto. - Ao ver o ovo é tarde demais: ovo
visto, ovo perdido. - Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. -
Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. - Olhar é o
necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. -
O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos.
Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo.
O guindaste vê o ovo. - Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. -
O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A
gente não sabe que ama o ovo. - Quando eu era antiga fui depositária do ovo e
caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri; tiraram de
mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. - Só quem visse o mundo veria o
ovo. Como o mundo, o ovo é óbvio.
O ovo não existe mais. Como a luz da estrela já morta, o ovo
propriamente dito não existe mais. - Você é perfeito, ovo. Você é branco. - A
você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a nação chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele
quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. - Olho o ovo na
cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de
não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é
porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de
vê-lo. - Jamais pensar no ovo é u.m modo de tê-lo visto. - Será que sei do ovo?
É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. O que eu não sei do ovo é o que
realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. - A
Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se. - O ovo desnuda a
cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. - Quem se aprofunda
num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa:
está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha
assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço.
Ovo sobre azul. - Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe
que ama outra coisa. - Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo.
Não toco nele. - Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida
mundana, e eu preciso da gema e da clara. - O ovo me vê. O ovo me idealiza?
O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que
fere. - O ovo nunca lutou. Ele é um dom. - O ovo é invisível a olho nu. De ovo a
ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. - O ovo terá sido talvez um
triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. - O ovo é basicamente
um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos? Não. O ovo é
originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa
espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão
desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do
ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. - O
ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. - Ovo
por enquanto será sempre revolucionário. - Ele vive dentro da galinha para que
não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado
de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo
de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é
branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o
que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era.
Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para
continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “o
rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado,
usa-lhe o sobrenome. - Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se se disser apenas
“o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. - Em relação ao ovo, o perigo
é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade.
A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo
a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria
retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não pode é a grande força do
ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como
um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a
própria vida. O ovo nos põe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo
é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o
ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é
impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a
galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama
o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma um
ovo, ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o
estado de galinha. Ser uma galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é
a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva à morte. Então o que a
galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se
manter luta contra a vida que é mortal. Ser uma galinha é isso. A galinha tem o
ar constrangido.
É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se
salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo.
Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela
era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso:
gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. - Quanto a quem
veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A
galinha é diretamente uma escolhida. - A galinha vive como em sonho. Não
tem senso da realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre
interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. - A galinha sofre
de um mal desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo. - Ela não
sabe se explicar: “sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a
sua vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
“Etc., etc., etc.” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem
muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior.
A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de “galinha”. A vida
interior da galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e
ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se
quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue.
A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse
vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta,
desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a
contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na
Macedônia. A galinha é sempre a tragédia mais moderna. Está sempre
inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma
mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone
ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito:
está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais
importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos
interessa.
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o
reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa
impossível. E com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o
reconhece.
De repente olho o ovo na cozinha e só vejo nele a comida. Não o
reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim:
começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de
cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo.
Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei
demais um ovo e ele foi me adormecendo.
A galinha que não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser
“feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si
como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder a si
mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir
pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar
a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o
ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para
que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que
“eu” é apenas uma das palavras que se desenha enquanto se atende ao
telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que
“eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que
são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem
mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo
precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção
à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da
galinha. Mas ainda estou falando do ovo.
E eis que não entendo o ovo. Só entendo ovo quebrado: quebro-o na
frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu
sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor
o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o
ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a
roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os
meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de
viver.
Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe casca e forma. E a partir deste
instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu
seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que
renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam
como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se
consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos
reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, a um
jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E
então não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente,
embora não se diga a verdade, também não é mais necessário dissimular.
Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor,
porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder
todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que
o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza.
Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.
E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição
concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com
a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente
concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes
fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça.
Não é caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do
que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao
prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem
todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos
foi imposta, inclusive, uma natureza toda adequada a muito prazer. O que
facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as
pouquíssimas instruções recebidas, e se sentem sem apoio. Houve o caso do
agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser
compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu
atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou
ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na revolta, sua revolta veio
quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam
nenhuma explicação. Houve outro, também eliminado, porque achava que “a
verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurála;
dele se disse que morreu em nome da verdade, mas o fato é que ele estava
apenas dificultando a verdade com sua inocência; sua aparente coragem era
tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele não compreendera que ser
leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses
casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho,
digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem
ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais
é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina
motivos, a nossa vida humana enfim.
Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da
manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de
várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido
começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o
nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver
ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um
meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou
boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso
emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois
aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro
que me dão como diária para facilitar minha vida de modo a que o ovo se faça,
pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba,
ultimamente comprei ações da Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo
ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que
nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado
esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do
ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para
que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho
notando que tudo o que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que
para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim
segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas
preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de
confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo
emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na
própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de
quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto
que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha
a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que
eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como um
justo. Eles me querem ocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois,
com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se
está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho
mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente
é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram
mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se
ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me
deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me
ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo
era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo
meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficoume
até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria
perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda
experiência, procuro raciocinar deste modo: que já me foi dado muito, que eles
já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que outros agentes, muito
superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com
as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo:
uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei
que não estou reconhecendo! com o coração batendo de emoção, eu pelo
menos não compreendo! com o coração batendo de confiança, eu pelo menos
não sei.
Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre
o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica
inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções,
estou tão cansada.
Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu
interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração
possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido.
Se eu fizer o sacrifício de viver apenas a minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo
for impossível. Então livre, delicado, sem mensagem alguma para mim - talvez
uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre
deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha.
Iluminando-a de minha palidez.
In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977, p. 81-84
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O primeiro aluno da classe
Seu segredo é um caracol. O cabelo é bem cortado, os olhos são
delicados e atentos. Sua cortês carne de nove anos ainda é transparente. É de
uma polidez inata: pega nas coisas sem quebrá-las. Empresta livros para os
colegas, ensina a quem lhe pede, não se impacienta com a régua e o
esquadro, quando há tanto aluno desvarrado. Seu segredo é um caracol. Do
qual não esquece um instante. Seu segredo é um caracol que o sustenta. Ele o
cria numa caixa de sapato com gentileza e cuidado. Com gentileza diariamente
finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado adia-Ihe atentamente a morte. Seu
segredo é um caracol criado com insônia e precisão.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O primeiro beijo
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o
namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto:
ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso.
Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de
me beijar?
Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no
meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e
entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma
mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom.
A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto
que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a
garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois
de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era
morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que
ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e
árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que
pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de
deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar,
esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água,
pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela
procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada,
entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.
O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o
primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício
de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito
até a barriga.
Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até
se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu
que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a
água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um
contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher
de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de
uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a
estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele
e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia.
Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes
relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha
acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de
coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era
inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num
equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele
a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes
jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O Processo
- Que é que eu faço? Não estou aguentando viver. A vida é tão curta, e eu
não estou aguentando viver.
- Não sei. Eu sinto o mesmo. Mas há coisas, há muitos coisas. Há um
ponto em que o desespero é uma luz, e um amor.
- E depois?
- Depois vem a Natureza.
- Você está chamando a morte de natureza?
- Não. Estou chamando a natureza de Natureza.
- Será que todas as vidas foram isso?
- Acho que sim.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
O segredo
Há uma palavra que pertence a um reino que me deixa muda de horror.
Não espantes o nosso mundo, não empurres com apalavra incauta o nosso
barco para sempre ao mar. Temo que depois da palavra tocada fiquemos puros
demais. Que faríamos de nossa vida pura? Deixa o céu à esperança apenas,
com os dedos trêmulos cerro os teus lábios, não a digas. Há tanto tempo eu de
medo a escondo que esqueci que a desconheço, e dela fiz o meu segredo
mortal.
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Olhe para todos a seu redor
Olhe para todos a seu redor e
veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos
porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas,
mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que
já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais,
e ficado do lado de fora, pois as catedrais que
nós mesmos construímos,
tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida
larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de
nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes
sorridentes onde se serve
com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar,
mas sem usar a palavra salvação
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para
não termos de reconhecer sua contextura de ódio,
de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte
para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença,
sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo
o grande medo maior e por isso nunca
falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez
de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para
não rirmos de nós mesmos e para que no
fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo"
e assim não ficarmos
perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos
quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia...
Clarice Lispector
(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
Onde estiveste de noite (trecho)
“As histórias não têm defeito”
Alberto Dines
“O desconhecido vicia”
Fuazi Arap
“Sentado na poltrona, com a boca cheia de dentes esperando a morte”
Raul Seixas
“O que vou anunciar é tão novo que receio ter todos os homens por
inimigos, a tal ponto se enraízam no mundo os preconceitos e as doutrinas,
uma vez aceitas”
William Harvey
A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um
verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e uma só vez para
alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em
silêncio.
Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava
personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina
criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os
participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai
pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos
enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia com uma claridade que
emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo diriam: “Ah, Ah”. Era uma
exclamação que era permitida no silêncio da noite. Olhavam a assustadora
beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente para sofrer o perigo.
Os pântanos se exalavam. Uma estrela de enorme densidade guiava-os.
Eles eram o avesso do Bem. Subiam a montanha misturando homens,
mulheres, gnomos e anões - como deuses extintos. O sino de ouro dobrava
pelos suicidas. Fora da estrela graúda, nenhuma estrela. E não havia mar. O
que havia no alto da montanha era escuridão. Soprava um vento noroeste. Eleela
era um farol? A adoração dos malditos ia se processar.
Os homens coleavam no chão como grossos e moles vermes: subiam.
Arriscavam tudo, já que fatalmente um dia iam morrer, talvez dentro de dois
meses, talvez sete anos - fora isto que Ele-ela pensava dentro deles.
Olha o gato. Olha o que o gato viu. Olha o que o gato pensou. Olha o que
era. Enfim, enfim, não havia símbolo, a “coisa” era! a coisa orgíaca. Os que
subiam estavam à beira da verdade. Nabucodonosor. Eles pareciam 20
nabucodonosores. E na noite se desquitavam. Eles estão nos esperando. Era
uma ausência - a viagem fora do tempo.
Um cão dava gargalhadas no escuro. “Tenho medo”, disse a criança.
“Medo de quê?”, perguntava a mãe. “De meu cão”. “Mas você não tem cão”.
“Tenho sim.” Mas depois a criancinha também gargalhou chorando, misturando
lágrimas de riso e de espanto.
Afinal chegaram, os malditos. E olharam aquela sempiterna Viúva, a
grande Solitária que fascinava todos, e os homens e mulheres não podia
resistir e queriam aproximar-se dela para amá-la morrendo mas ela com um
gesto mantinha todos à distância. Eles queriam amá-la de um amor estranho
que vibra em morte. Não se incomodavam de amá-la morrendo. O manto de
Ela-ele era de sofrida cor roxa. Mas as mercenárias do sexo em festim
procuravam imitá-la em vão.
Que horas seria? ninguém podia viver no tempo, o tempo era indireto e
por sua própria natureza sempre inalcançável. Eles já estavam com as
articulações inchadas, os estragos roncanvam nos estômagos cheios de terra,
os lábios túmidos e no entanto rachados - eles subiam a encosta. As trevas
eram de um som baixo e escuro como a nota mais escura de um violoncelo.
Chegaram. O Mal-Aventurado, o Ele-ela, diante da adoração de reis e
vassalos, refulgia como uma iluminada águia gigantesca. O silêncio pululava de
respirações ofegantes. A visão era de bocas entreabertas pela sensualidade
que quase os paralisava de tão grossa. Eles se sentiam salvos do Grande
Tédio.
O morro era de sucata. Quando a Ela-ele parava um instante, homens e
mulheres, entregues a eles próprios por um instante, diziam-se assustados: eu
não sei pensar. Mas o Ele-ela pensava dentro deles.
Um arauto mudo de clarineta anunciava a notícia. Que notícia? a da
bestialidade? Talvez no entanto fosse o seguinte: a partir do arauto cada um
deles começou a “se sentir”, a sentir a si próprio. E não havia repressão: livres!
Aí eles começaram a balbuciar mas para dentro porque a Ela-ele era
cáustica quanto a não disturbarem uns aos outros na sua lenta metamorfose.
“Sou Jesus! sou judeu!”, gritava em silêncio o judeu pobre. Os anais da
astronomia nunca registraram nada como este espetacular cometa,
recentemente descoberto - sua cauda vaporosa se arrastará por milhões de
quilômetros no espaço. Sem falar no tempo.
Um anão corcunda dava pulinhos como um sapo, de uma encruzilhada a
outra - o lugar era de encruzilhadas. De repente as estrelas apareceram e eram
brilhantes e diamantes no céu escuro. E o corcunda-anão dava pulos, os mais
altos que conseguia para alcançar os brilhantes que sua cobiça despertava.
Cristais! Cristais! gritou ele em pensamentos que eram saltitantes como os
pulos.
A latência pulsava leve, ritmada, ininterrupta. Todos eram tudo em
latência. “Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento”: Goethe.
Uma nova e não autêntica história brasileira era escrita no estrangeiro. Além
disso, os pesquisadores nacionais se queixavam de falta de recursos para o
trabalho.
A montanha era de origem vulcânica. E de repente, o mar: a revolta
rebentação do Atlântico lhes enchia os ouvidos. E o cheiro salgado do mar
fecundava-os e triplificava-os em monstrinhos.
O corpo humano pode voar? A levitação. Santa Tereza D´Ávila: “Parecia
que uma grande força me erguia no ar. Isso me provocava um grande medo.”
O anão levitava por segundos mas gostava e não tinha medo.
- Como é que você se chama, disse mudo o rapaz, para eu chamar você
a vida inteira. Eu gritarei seu nome.
- Eu não tenho nome lá embaixo. Aqui tenho o nome de Xantipa.
- Ah, quero gritar Xantipa! Xantipa! Olhe, eu estou gritando para dentro. E
qual é o seu nome durante o dia?
- Acho que é... é... parece que é Maria Luísa.
E estremeceu como um cavalo se eriça. Caiu exangue no chão. Ninguém
assassinava ninguém porque já eram assassinados. Ninguém queria morrer e
não morria mesmo.
Enquanto isso - delicada, delicada - o Ele-ela usava um timbre. A cor do
timbre. Porque eu quero viver em abundância e trairia o meu melhor amigo em
troca de mais vida do que se pode ter. Essa procura, essa ambição. Eu
desprezava os preceitos dos sábios que aconselham a moderação e a pobreza
de alma - a simplificação da alma, segundo minha própria experiência, era a
santa inocência. Mas eu lutava contra a tentação.
Sim. Sim: cair até a abjeção. Eis a ambição deles. O som era o arauto do
silêncio. Porque nenhum poderia se deixar possuir por Aquele-aquela-semnome.
Eles queriam fruir o proibido. Queriam elogiar a vida e não queriam a dor
que é necessária para se viver, para se sentir e para amar. Eles queriam sentir
a imortalidade terrífica. Pois o proibido é sempre o melhor. Eles ao mesmo
tempo não se incomodavam de talvez cair no enorme buraco da morte. E a
vida só lhes era preciosa quando gritavam e gemiam. Sentir a força do ódio era
o que eles melhor queriam. Eu me chamo povo, pensavam.
- Que é que eu faço para ser herói? Porque nos templos só entram heróis.
E o silêncio de repente o seu grito uivado que não se sabia se de amor ou
dor mortal, o herói cheirando mirra, incenso e benjoim.
Ele-ela cobria a sua nudez com um manto lindo mas como uma mortalha,
mortalha púrpura, agora vermelho-catedral. Em noites sem lua Ela-ele virava
coruja. Comerás teu irmão, disse ela no pensamento dos outros, e na hora
selvagem haverá um eclipse do sol.
Para não se traírem eles ignoravam que hoje era ontem e haveria
amanhã. Soprava no ar uma transparência como igual homem nenhum havia
respirado antes. Mas eles espargiam pimenta em pó nos próprios órgãos
genitais e se contorciam de ardor. E de repente o ódio. Eles não matavam uns
aos outros mas sentiam tão implacável ódio que era como um dardo lançado
num corpo. E se rejubilavam danados pelo que sentiam. O ódio era um vómito
que os livrava do vómito maior, o vómito da alma.
Ele-ela com as sete notas musicais conseguia o uivo. Assim como com as
mesmas sete notas podia criar música sacra. Ouviram eles dentro deles o dóré-
mi-fá-sol-lá-si, o “si” macio e agudíssimo. Eles eram independentes e
soberanos, apesar de guiados pelo Ele-ela. Rugindo a morte nos porões
escuros. Fogo, grito, cor, vício, cruz. Estou vigilante no mundo? de noite vivo e
de dia durmo, esquivo. Eu, com faro de cão, orgiático.
Quanto a eles, cumpriam rituais que os fiéis executam sem entender-lhes
os mistérios. O cerimonial. Com um gesto leve Ela-ele tocou numa criança
fulminando-a e todos disseram: amém. A mãe deu um uivo de lobo: ela toda
morta, ela, também.
Mas era para ter supersensações que para ali se subia. E era sensação
tão secreta e tão profunda que o júbilo faiscava no ar. Eles queriam a força
superior que reina no mundo através dos séculos. Tinham medo? Tinham.
Nada substituía a riqueza do silencioso pavor. Ter medo era a amaldiçoada
glória da escuridão, silente como uma lua.
Aos poucos se habituavam ao escuro e a Lua, antes escondida, toda
redonda e pálida, tinha lhes abrandado a subida. Eram trevas quando um por
um subira “a montanha”, como chamavam o planalto um pouco mais elevado.
Tinham se apoiado no chão para não cair, pisando em árvores secas e
ásperas, pisando em cactus espinhoso. Era um medo irresistivelmente
atraente, eles prefeririam morrer que abandoná-lo. O Ele-ela era-lhes como a
Amante. Mas se algum ousasse por ambição tocá-la era congelado na posição
em que estivesse.
Ele-ela contou-lhes dentro de seus cérebros - e todos ouviram-na dentro
de si - o que acontecia a uma pessoa quando esta não atendia ao chamado da
noite: acontecia que na cegueira da luz do dia a pessoa vivia na carne aberta e
nos olhos ofuscados pelo pecado da luz - a pessoa vivia sem anestesia o
horror de se estar vivo. Não há nada a temer, quando não se tem medo. Era a
véspera do apocalipse. Quem era o rei da Terra? Se você abusa do poder que
você conquistou, os mestres o castigarão. Cheios do terror de uma feroz
alegria eles se abaixavam e às gargalhadas comiam ervas daninhas do chão e
as gargalhadas reboavam de escuridões a escuridões com seus ecos. Um
cheiro sufocante de rosas enchia de peso o ar, rosas malditas na sua força de
natureza doida, a mesma natureza que inventava as cobras e os ratos e
pérolas e crianças - a natureza doida que ora era noite em trevas, ora o dia de
luz. Esta carne que se move apenas porque tem espírito.
Das bocas escorria saliva grossa, amarga e untuosa, e eles se urinavam
sem sentir. As mulheres que haviam parido recentemente apertavam com
violência os próprios seios e dos bicos um grosso leite preto esguichava. Uma
mulher cuspiu com força na cara de um homem e o cuspe áspero escorreu-lhe
da face até a boca - avidamente ele lambeu os lábios.
Estavam todos soltos. A alegria também era frenética. Eles eram o harém
do Ele-ela. Tinham caído finalmente no impossível. O misticismo era a mais
alta forma de superstição.
O milionário gritava: quero o poder! poder! quero que até os objetos
obedeçam as minhas ordens! E direi: move-te, objeto! e ele por si só se
moverá.
A mulher velha e desgrenhada disse para o milionário: quer ver como
você não é milionário? Pois vou te dizer: você não é dono do próximo segundo
de vida, você pode morrer sem saber. A morte te humilhará. O milionário: Eu
quero a verdade, a verdade pura!
A jornalista fazendo uma reportagem magnifica da vida crua. Vou ganhar
fama internacional como a autora de “O Exorcista” que não li para não me
influenciar. Estou vendo direto a vida crua, eu a estou vivendo.
Eu sou solitário, se disse o masturbador.
Estou em espera, espera, nada jamais me aconteceu, já desisti de
esperar. Eles bebiam o amargo licor das ervas ásperas.
- Eu sou um profeta! eu vejo o além! se gritava um rapaz.
Padre Joaquim Jesus Jacinto - tudo com jota porque a mãe dele gostava
da letra jota.
Era dia trinta e um de dezembro de 1973. O horário astronômico seria
aferido pelos relógios atômicos, cujo atraso é de apenas um segundo a cada
três mil e trezentos anos.
A outra deu para espirrar, um espirro atrás do outro, sem parar. Mas ela
gostava. A outra se chamava J.B.
- Minha vida é um verdadeiro romance! gritava a escritora falida.
O êxtase era reservado para o Ele-ela. Que de repente sofreu a exaltação
do corpo, longamente. Ela-ele disse: parem! Porque ela se endemoniava por
sentir o gozo do Mal. Eles todos através dela gozavam: era a celebração da
Grande Lei. Os eunucos faziam uma coisa que era proibido olhar. Os outros,
através de Ela-ele, recebiam frementes as ondas do orgasmo - mas só ondas
porque não tinham força de, sem se destruírem, receber tudo. As mulheres
pintavam a boca de roxo como se fosse fruta esmagada pelso afiados dentes.
O Ela-ele contou-lhes o que acontecia quando não se iniciava na
profetização da noite. Estado de choque. Por exemplo: a moça era ruiva e
como se não bastasse era vermelha por dentro e além disso daltônica. Tanto
que no seu pequeno apartamento havia uma cruz verde sobre fundo vermelho:
ela confundia as duas cores. Como é que começara o seu terror? Ouvindo um
disco ou o silêncio reinante ou passos no andar de cima - e ei-la aterrorizada.
Com medo do espelho que a refletia. Defronte tinha um armário e a impressão
era que as roupas se mexiam dentro dele. Aos poucos ia restringindo o
apartamento. Tinha medo até de sair da cama. A impressão de que iam agarrar
o seu pé embaixo da cama. Era magríssima. O seu nome era Psiu, nome
vermelho. Tinha medo de acender a luz no escuro e encontrar a fria lagartixa
que morava com ela. Sentia com aflição os dedinhos gelados e brancos da
lagartixa. Procurava avidamente no jornal as páginas policiais, notícias do que
estava acontecendo. Sempre aconteciam coisas apavorantes para as pessoas,
como ela, que viviam só e eram assaltadas de noite. Tinha na parede um
quadro que era o de um homem que a fixava bem nos olhos, vigiando-a. Essa
figura ela imaginava que a seguia por todos os cantos da casa. Tinha medo
pânico de ratos. Preferia morrer a entrar em contato com eles. No entanto
ouvia os guinchos deles. Chegava a sentir-lhes as mordidas nos pés. Acordava
sempre sobressaltada, suando frio. Ela era um bicho acuado. Normalmente
dialogava consigo mesma. Dava prós e contras e sempre quem perdia era ela.
Sua vida era uma constante substração de si mesma. Tudo isso porque não
atendeu ao chamado da sirene.
O Ele-ela só deixava mostrar o rosto de andrógina. E dele se irradiava tal
cego esplendor de doido que os outros fruíam a própria loucura. Ela era o
vaticínio e a dissolução e já nascera tatuada. O ar todo cheirava agora a fatal
jasmim e era tão forte que alguns vomitavam as próprias entranhas. A Lua
estava plena no céu. Quinze mil adolescentes esperavam que espécie de
homem e mulher eles iriam ser.
Então Ela-ele disse:
- Comerei o teu irmão e haverá um eclipse total e o fim do mundo.
De vez em quando ouvia-se um longo relincho e não se via cavalo
nenhum. Sabia-se apenas que com sete notas musicais fazem-se todas as
músicas que existem e que existiam e que existirão. Da ela-ele emanava-se
forte cheiro de jasmim esmagado porque era noite de Lua cheia. O catimbó ou
a feitiçaria. Max Ernst quando criança foi confundido com o Menino Jesus
numa procissão. Depois provocava escândalos artísticos. Tinha uma paixão
ilimitada pelos homens e uma imensa e poética liberdade. Mas por que estou
falando nisso? Não sei. “Não sei” é uma resposta ótima.
O que fazia Thomas Edison, tão inventor e livre, no meio deles que eram
comandados por Ele-ela?
Gregotins, pensou o estudante perfeito, era a palavra mais difícil da
língua.
Escutai! os anjos anunciadores cantam!
O judeu pobre gritava mudo e ninguém o ouviu, o mundo inteiro não o
ouvia. Ele disse assim: tenho sede, suor e lágrimas! e para saciar a minha sede
bebo meu suor e minhas próprias lágrimas salgadas. Eu não como porco! sigo
a Torah! mas dai-me alívio, Jeová, que se parece demais comigo!
Jubileu de Almeida ouvia o rádio de pilha, sempre. “O mingau mais
gostoso é feito com Cremogema”. E depois anunciava, de Strauss, uma valsa
que por incrível que parecesse chamava-se “O pensador livre”. É verdade,
existe mesmo, eu ouvi. Jubileu era dono do “Ao Bandolim de Ouro”, loja de
instrumentos musicais quase falida, e era tarado por valsas de Strauss. Era
viúvo, ele, quer dizer, Jubileu. Seu rival era “O Clarim”, concorrente na rua
Gomes Freire ou Frei Caneca. Jubileu era também afiador de pianos.
Todos ali estavam prestes a se apaixonar. Sexo. Puro sexo. Eles se
freavam. A Rumânia era um país perigoso: ciganos.
Faltava petróleo no mundo. E, sem petróleo, faltava comida. Carne,
sobretudo. E sem carne eles se tornavam terrivelmente carnívoros.
“Aqui, Senhor, encomendo a minha alma”, dissera Cristóvão Colombo ao
morrer, vestido com o hábito franciscano. Ele não comia carne. Se santificava,
Cristóvão Colombo, o descobridor das ondas, o que descobriu S. Francisco de
Assis. Hélas! ele morrera. Onde está agora? onde? pelo amor de Deus,
responde!
De repente e bem de leve - fiat lux.
Houve uma debandada assustadiça como de pardais.
Tudo tão rápido que mais parecia terem se esvanecido.
Na mesma hora estavam ora deitados na cama a dormir, ora já despertos.
O que existira era silêncio. Eles não sabiam de nada. Os anjos da guarda - que
tinham tirado um descanso já que todos estavam na cama sossegados -
despertavam frescos, bocejando ainda, mas já protegendo os seus pupilos.
Madrugada: o ovo vinha rodopiando bem lento do horizonte para o
espaço. Era de manhã: uma moça loura, casada com rapaz rico, dá à luz um
bebê preto. Filho do demônio da noite? Não se sabe. Apuros, vergonha.
Jubileu de Almeida acordou como pão dormido: chocho. Desde pequeno
fora murcho assim. Ligou o rádio e ouviu: “Sapataria Morena onde é proibido
vender caro”. Iria lá, estava precisando de sapatos. Jubileu era albino, negro
aço com cílios amarelos quase brancos. Ele estalou um ovo na frigideira. E
pensou: se eu pudesse algum dia ouvir “O pensador livre”, de Strauss, eu seria
recompensado na minha solidão. Só ouvira essa valsa uma única vez, não se
lembrava quando.
O poderoso queria no seu breakfast comer caviar dinamarquês às
colheradas, estalando com os dentes agudos as bolinhas. Ele era do Rotary
Club e da Maçonaria e do Diners Club. Tinha o requinte de não comer caviar
russo: era um modo de derrotar a poderosa Rússia.
O judeu pobre acorda e bebe água da bica sofregamente. Era a única
água que tinha nos fundos da pensão baratíssima onde morava: uma vez veio
uma barata nadando no feijão ralo. As prostitutas que lá moravam nem
reclamavam.
O estudante perfeito, que não desconfiava que era um chato, pensou:
qual era a palavra mais difícil que existia? Qual era? Uma que significava
adornos, enfeites, atavios? Ah, sim, gregotins. Decorou a palavra para escrevêla
na próxima prova.
Quando começou a raiar o dia todos estavam na cama sem parar de
bocejar. Quando acordavam, um era sapateiro, um estava preso por estupro,
uma era dona-de-casa, dando ordens à cozinheira, que nunca chegava
atrasada, outro era banqueiro, outro era secretário, etc. Acordavam, pois, um
pouco cansados, satisfeitos pela noite tão profunda de sono. O sábado tinha
passado e hoje era domingo. E muitos foram à missa celebrada por padre
Jacinto que era o padre da moda: mas nenhum se confessou, já que não
tinham nada a confessar.
A escritora falida abriu o seu diário encadernado de couro vermelho e
começou a anotar assim: “7 de julho de 1974. Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu! Nesta
bela manhã de um sol de domingo, depois de ter dormido muito mal, eu,
apesar de tudo, aprecio as belezas maravilhosas da Natureza-mãe. Não vou à
praia porque sou gorda demais e esta é uma infelicidade para quem aprecia
tanto as ondas verdezitas do Mar! Eu me revolto! Mas não consigo fazer
regime: morro de fome. Gosto de viver perigosamente. Tua língua viperina será
cortada pela tesoura da complacência”.
De manhã: agnus dei. Bezerro de ouro? Urubu.
O judeu pobre: livrai-me do orgulho de ser judeu!
A jornalista de manhã bem cedo telefona para sua amiga:
- Claudia, me desculpe telefonar num domingo a esta hora! Mas acordei
com uma inspiração fabulosa: vou escrever um livro sobre Magia Negra! Não,
não li o tal do Exorcista, porque me disseram que é má literatura e não quero
que pensem que estou indo na onda dele. Você já pensou bem? o ser humano
sempre tentou se comunicar com o sobrenatural desde o antigo Egito com o
segredo das Pirâmides, passando pela Grécia com seus deuses, passando por
Shakespeare no Hamlet. Pois eu também vou entrar nessa. E, por Deus, vou
ganhar essa parada!
Havia em muitas casas do Rio o cheiro de café. Era domingo. E o rapaz
ainda na cama, cheio de torpor, ainda mal-acordado, se disse: mais um
domingo de tédio. Com o que havia sonhado, mesmo? Sei lá, respondeu-se, se
sonhei, sonhei com mulher.
Enfim, o ar clareia. E o dia de sempre começa. O dia bruto. A luz era
maléfica: instaurava-se o mal-assombrado dia diário. Uma religião se fazia
necessária: uma religião que não tivesse medo do amanhã. Eu quero ser
invejado. Eu quero o estupro, o roubo, o infanticídio, e o desafio meu é forte.
Queria ouro e fama, desprezava até o sexo: amava depressa e não sabia o que
era amor. Quero o ouro mau. Profanação. Vou ao meu extremo. Depois da
festa - que festa? noturna? - depois da festa, desolação.
Havia o observador que escreveu assim no caderno de notas: “O
progresso e todos os fenômenos que o cercam parece participar intimamente
dessa lei de aceleração geral, cósmica e centrífuga que arrasta a civilização ao
“progresso máximo”, a fim de que em seguida venha a queda. Uma queda
ininterrupta ou uma queda rapidamente contida? Aí está o problema: não
podemos saber se esta sociedade se destruirá completamente ou se
conhecerá apenas uma interrupção brusca e depois a retomada de sua
marcha”. E depois:
“O Sol diminuiria seus efeitos sobre a Terra e provocaria o início de um
novo período glacial que poderia durar no mínimo dez mil anos”. Dez mil anos
era muito e assustava. Eis o que acontece quando alguém escolhe, por medo
da noite escura, viver a superficial luz do dia. É que o sobrenatural, divino ou
demoníaco, é uma tentação desde o Egito, passando pela Idade Média até os
romances baratos de mistério.
O açougueiro, que nesse dia só trabalhava das oito às onze horas, abriu o
açougue: e parou embriagado de prazer ao cheiro de carnes e carnes cruas,
cruas e sangrentas. Era o único que de dia continuava a noite.
Padre Jacinto estava na moda porque ninguém como ele erguia tão
limpidamente a taça e bebia com sagrada unção e pureza, salvando a todos, o
sangue de Jesus que era o Bem. Com delicadeza as mãos pálidas num gesto
de oferenda.
O padeiro como sempre acordou às quatro horas e começou a fazer a
massa de pão. De noite amassar ao Diabo?
Um anjo pintado por Fra Angélico, século XV, voejava pelos ares: era a
clarineta anunciadora da manhã. Os postes de luz elétrica não tinham ainda
sido apagados e lustravam-se empalidecidos. Postes. A velocidade come os
postes quando se está correndo de carro.
O masturbador de manhã: meu único amigo fiel é meu cão. Ele não
confiava em ninguém, sobretudo em mulher.
A que bocejara a noite toda e dissera: “t'isconjuro, mãe de santo!”
começou a coçar e a bocejar. Diabo, disse ela.
O poderoso - que cuidava de orquídeas, catléias, lélias e oncídios -
apertou impaciente a campainha para chamar o mordomo que lhe trouxesse o
já atrasado breakfast. O mordomo adivinhara-lhe os pensamentos e sabia
quando lhe trazer os galgos dinamarqueses para serem rapidamente
acariciados.
Aquela que de noite gritava “estou em espera, em espera”, de manhã,
toda desgrenhada disse para o leite na leiteira que estava no fogo:
- Eu te pego, seu porcaria! Quer ver se tu te mancas e ferves na minha
cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu desviar um instante o olhar do
leite, esse desgraçado vai aproveitar para ferver e entornar. Como a morte que
vem quando não se espera.
Ela esperou, esperou e o leite não fervia. Então, desligou o gás.
No céu o mais leve arco-íris: era o anúncio. A manhã como uma ovelha
branca. Pomba branca era a profecia. Manjedoura. Segredo. A manhã
preestabelecida. Ave-Maria, gratia plena, dominus tecum. Benedicta tu in
mulieribus et benedictum frutus ventri tui Jesus. Sancta Maria Mater Dei ora pro
nobis pecatoribus. Nunca et ora nostrae morte Amem.
Padre Jacinto ergueu com as duas mãos a taça de cristal que contém o
sangue escarlate de Cristo. Eta, vinho bom. E uma flor nasceu. Um flor leve,
rósea, com perfume de Deus. Ele-ela há muito sumira do ar. A manhã estava
límpida como coisa recém-lavada.
AMÉM
Os fiéis distraídos fizeram o sinal da Cruz.
AMÉM
DEUS
FIM
Epílogo:
Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal que
me guiou. Onde estivestes de noite? Ninguém sabe. Não tentes responder -
pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus.
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

2 comentários:

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